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Foto: Divulgação/Prefeitura de Colatina
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Loterias criadas por prefeituras de pequenos municípios têm dado aval para que empresas de apostas esportivas, as bets, funcionem com pouca fiscalização a partir do pagamento de taxas irrisórias.
Há casos de bets registradas em endereços falsos que recebem credenciamento. A brecha jurídica estimulou a abertura de dezenas de firmas com indícios de que são, na verdade, fictícias.
A casa número 1 da rua Central do município de Bodó (RN), por exemplo, já foi sede de ao menos 30 empresas de exploração de jogos de azar. É a maior concentração em um só endereço em todo o Brasil, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica. Isso apesar de a cidade ter apenas 2.360 habitantes e ser a sexta menos populosa do estado.
No entanto, não existe casa de número 1 nessa rua em Bodó, segundo a agência dos Correios do próprio município. No lado par, a numeração começa na casa 10; no lado ímpar, a partir do 7.
O credenciamento de bets por municípios é considerado ilegal pelo governo federal e o assunto está em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal), após o Solidariedade entrar com ação em que pede a proibição dessas loterias.
O Ministério da Fazenda monitora a abertura de bets irregulares e informa que, a seu pedido, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) já derrubou mais de 18 mil sites de casas de apostas.
Dezenas de municípios já aprovaram leis que autorizam a criação de suas próprias loterias. Na ação ajuizada pelo Solidariedade no STF, há órgãos de 13 cidades representadas. Em portais de compras públicas é possível verificar que outros 18 municípios, no mínimo, têm processos em andamento para credenciar bets e empresas de intermediação de pagamento.
A principal vantagem oferecida pelas prefeituras é o valor baixo no pagamento da outorga, taxa cobrada pelo direito de operar. O governo federal cobra R$ 30 milhões de outorga fixa para alguém ter até três sites de apostas.
Em Bodó, a mesma taxa sai por R$ 5.000. Quase todas as firmas registradas no número 1 da rua Central no município -24 dos 30 CNPJs- já tiveram como sócio-administrador o engenheiro Camilo Roma de Brito, que é presidente da Analome (Associação Nacional das Loterias Municipais e Estaduais).
Três empresas ainda estão em seu nome. As outras 21 firmas naquele endereço foram repassadas a novos sócio-administradores. O registro de que ele era titular das empresas pode ser encontrado em plataformas que usam dados públicos da Receita Federal, como a Cruzagrafos, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
Brito é sócio de um filho do ex-prefeito de Bodó, Marcelo Mario Porto Filho, num posto de combustíveis na cidade. Foi durante a gestão dele que a loteria municipal, a Lotseridó, foi criada. Marcelo Filho governou Bodó por dois mandatos e é aliado do atual prefeito. A reportagem conversou com Marcelo Neto, o sócio de Brito, mas ele não havia respondido às perguntas enviadas por aplicativo de mensagens até a noite desta sexta-feira (3).
Em nota, Brito afirmou que é proprietário de três bets, e não de 24. Ele afirmou que suas empresas “permanecem inativas desde sua abertura em dezembro de 2024, sem qualquer operação ou faturamento, aguardando o cenário nacional”, e não respondeu sobre o endereço falso em Bodó.
Do total, quatro empresas no endereço fictício foram credenciadas pela Lotseridó. Uma delas já teve Brito como proprietário e hoje está registrada em nome de outra pessoa.
O processo de credenciamento ocorre em sites especializados em leilões e compras públicos. As prefeituras abrem prazo para que as empresas interessadas enviem os documentos obrigatórios pelas plataformas online, que pode durar dias ou semanas.
A partir do pagamento da outorga, uma lista de empresas credenciadas é publicada no site das loterias, dando um aval para o funcionamento que é considerado ilegal por órgãos federais.
A Lotseridó deu aval não apenas a bets do próprio município, mas também nas cidades de São Paulo, Jaú, São Caetano do Sul (SP), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), e Toritama (PE) -cidade do agreste pernambucano onde também há empresas de Brito. Uma outra companhia dele já foi contratada para o serviço de asfaltamento de ruas da cidade.
Uma delas está registrada na avenida Principal, nº 1, de Toritama, que não consta nos bancos de dados dos Correios nem no Cadastro Nacional de Endereços do IBGE. Outras duas empresas da esposa dele estão no mesmo endereço.
As três firmas -responsáveis pelos sites Bet40Graus, Shopping Bets e JogueBet- foram credenciadas pela Lotseridó.
Brito afirmou que sua empresa credenciada pela loterida de Bodó “nunca operou ou processou apostas” e ressaltou que os Correios hoje mantêm apenas um CEP para toda a cidade de Toritama, negando que sua empresa esteja registrada em endereço falso.
Boa parte das bets credenciadas pela Lotseridó estão fora do ar, especialmente aquelas ligadas a Brito. Ao menos uma, a Pinbet, seguia ativa e recebendo apostas até esta sexta-feira (3). O site da empresa faz apostas esportivas e também tem jogos eletrônicos como o Fortune Tiger, conhecido como “jogo do tigrinho” e famoso pelo potencial de danos financeiros aos usuários.
Ao contrário de outras empresas abertas pelo empresário, a Pinbet está num endereço real: uma loja num shopping center em Toritama do qual Brito já foi síndico.
O mesmo local é sede de outras sete empresas -todas na loja 189 do shopping, de acordo com os cadastros- que já tiveram Brito como proprietário e hoje têm outros sócio-administradores. Quatro foram autorizadas pela Lotseridó a atuarem como intermediadoras de pagamentos da loteria municipal. Outras três são bets credenciadas pela loteria municipal de Toritama, a Loto.
Procuradas por email desde a última terça-feira (30), as prefeituras de Bodó e Toritama não responderam a reportagem.
“É um sinal de irregularidade”, diz a advogada criminalista e doutora em direito Ilana Martins Luz, que estuda lavagem de dinheiro em bets. “É um sinal de alerta para as autoridades, no mínimo, iniciarem uma investigação”.
Segundo ela, empresas do setor de apostas podem ser usadas para lavagem de dinheiro por diferentes métodos. É possível investir os ganhos com o crime em bets para justificar que os lucros vêm da exploração dos jogos, ou apostar grandes quantias de dinheiro numa tática para fazer com que o dinheiro retorne na forma de prêmio -nesse caso, as perdas são minimizadas pelo volume de apostas.
Ela explica que, entre as bets credenciadas pelo governo federal, há medidas de prevenção, como a proibição de apostas com dinheiro em espécie, exigência de cadastro dos apostadores e bloqueio de casas de apostas ilegais por instituições bancárias.
A prefeitura de Bodó já foi notificada pelo Ministério da Fazenda e pela loteria estadual do Paraná, que alertaram que a concessão de registros pelo município contraria a legislação.
Em nota, além de ressaltar que suas empresas de apostas estão inativas, Brito afirmou que o posicionamento do Ministério da Fazenda sobre o tema é uma tentativa “de impor um monopólio que contraria o direito dos demais entes federados de criar e gerir seus respectivos serviços públicos de Loterias”.
Ele defende que decisões do STF em 2020 já deixaram claro que “a competência privativa para legislar não se confunde com a exploração dos serviços lotéricos”.
*TULIO KRUSE/folhapress
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