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A reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que passou a vigorar com a Lei 14.230/2021, trouxe mudanças profundas que impactam diretamente a gestão pública e as formas de responsabilização de agentes públicos.
Mas, afinal, o que essas transformações significam para a administração pública e os profissionais envolvidos? Essa reforma alterou profundamente os requisitos e procedimentos para caracterizar atos de improbidade, e trouxe questionamentos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A seguir, de forma acessível e objetiva, resumimos os principais pontos da reforma – do novo dolo específico exigido para improbidade às decisões do STF sobre retroatividade, taxatividade do art. 11, legitimidade ativa e suspensão de dispositivos polêmicos – destacando também os impactos práticos para advogados, gestores públicos e o Ministério Público.
Dolo específico e fim da improbidade culposa
A Lei 14.230/2021 passou a exigir a comprovação de dolo específico (intenção deliberada) para que um ato seja considerado improbidade administrativa. Em outras palavras, condutas meramente culposas – aquelas decorrentes de imprudência, imperícia ou negligência, sem intenção ilícita – deixaram de configurar atos de improbidade.
Agora, é preciso demonstrar que o agente público agiu com vontade livre e consciente de alcançar um resultado ilícito, não bastando a mera voluntariedade do ato nem o simples exercício da função pública. Inclusive, a lei esclarece que divergências na interpretação da lei não podem ser punidas como improbidade.
Essa mudança reflete o entendimento de que a improbidade está vinculada à desonestidade e à má-fé, e não a erros administrativos, desde que não haja a intenção de lesar a administração.
O próprio STF, em outubro de 2024, confirmou que o dolo é indispensável para caracterizar improbidade, declarando inconstitucional a punição por improbidade na modalidade culposa. Agir com negligência ou erro pode gerar responsabilizações administrativas ou civis, mas não configura a desonestidade necessária para o ato de improbidade.
Desde a criação da LIA em 1992, a possibilidade de punir agentes por mera culpa gerava controvérsia, sendo criticada por impor sanções severas a erros sem má-fé e inibir a iniciativa de gestores públicos, chegando a “sepultar carreiras” por equívocos administrativos. A exigência de dolo específico veio justamente corrigir esse excesso, focando o combate à corrupção nos casos de conduta desonesta intencional.
Retroatividade da norma mais benéfica (STF – Tema 1.199)
Uma questão importante era saber se essa nova exigência de dolo (mais benéfica aos réus) valeria para fatos ocorridos antes de 2021. Em agosto de 2022, no Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989/PR), o STF definiu que a eliminação da improbidade culposa se aplica retroativamente aos casos pendentes de julgamento definitivo, por se tratar de norma sancionatória mais benigna.
Isso significa que atos praticados sem dolo, anteriormente tratados como improbidade, não podem mais resultar em condenação caso o processo ainda não tenha transitado em julgado – o juiz deve avaliar se há evidências de dolo e, não havendo, o agente não será condenado por improbidade.
Por outro lado, o STF ressaltou o respeito à coisa julgada: condenações por improbidade culposa já transitadas em julgado não são desfeitas automaticamente pela nova lei, em observância à segurança jurídica e à regra de que a lei não retroage para atingir a coisa julgada. Em suma, houve retroatividade benéfica mitigada: beneficia os casos em andamento (ainda sem decisão final), mas não alcança decisões definitivas já consolidadas.
Fim da cláusula geral de violação a princípios (taxatividade do art. 11)
Outra mudança de grande impacto foi no artigo 11 da LIA, que trata dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. Antes da reforma, o art. 11 continha uma cláusula geral aberta – ou seja, apresentava exemplos de atos contrários aos princípios, mas admitia enquadrar como improbidade qualquer ação ou omissão que violasse princípios da administração, mesmo que não estivesse expressamente listada.
Essa cláusula genérica (“violação aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições…”) funcionava como um numerus apertus, permitindo punir por improbidade condutas não tipificadas de forma específica, com base apenas na ofensa a princípios administrativos.
Depois da Lei 14.230/2021, essa lógica mudou. O novo texto do art. 11 fechou o rol de atos de improbidade contra princípios, tornando-o taxativo (numerus clausus). Agora, só haverá improbidade por ofensa a princípios se a situação se enquadrar em alguma das hipóteses específicas previstas nos incisos do art. 11.
Em outras palavras, acabou a cláusula geral do caput do art. 11; não basta mais alegar violação genérica a princípios, é preciso que a conduta do agente esteja tipificada em um dos incisos do artigo. A reforma inclusive revogou incisos antigos (como o inciso I original do art. 11) e redefiniu as condutas típicas nesse artigo.
Essa mudança traz mais objetividade e previsibilidade, evitando interpretações muito amplas – doravante, a violação a princípios só será improbidade administrativa se corresponder a uma conduta expressamente catalogada na lei.
Legitimidade ativa: Ministério Público e entes lesados
A reforma de 2021 também tocou na legitimidade para propor ações de improbidade. O texto da Lei 14.230/21 atribuiu exclusividade ao Ministério Público (MP) para ajuizar ações de improbidade e firmar acordos de não persecução cível, retirando essa prerrogativa dos entes públicos lesados (União, estados, municípios etc.).
Até então, vigorava a chamada legitimidade concorrente ou disjuntiva: o MP e a pessoa jurídica lesada pelo ato de improbidade podiam, cada qual, ingressar com a ação. Com a mudança, procuradores de Estado, municipais ou advocacias públicas ficaram impedidos de acionar a LIA por conta própria, o que gerou reação.
Em 31/08/2022, o STF, ao julgar as ADIs 7042 e 7043, derrubou essa exclusividade do MP. Por maioria de votos, a Corte declarou inconstitucional a supressão da legitimidade dos entes lesados e restabeleceu a legitimidade concorrente para propositura das ações de improbidade. Assim, o órgão ou ente público prejudicado também pode propor a ação de improbidade e firmar acordos, sem depender exclusivamente do Ministério Público.
O relator, ministro Alexandre de Moraes, destacou que a própria Constituição Federal, no art. 129, §1º, prevê que a legitimação do MP não impede a de terceiros na defesa do patrimônio público. Eliminar a capacidade do ente público de buscar a tutela de seu próprio patrimônio afrontaria a lógica constitucional e restringiria o acesso à Justiça. “Não é possível, por norma legal, conceder ao Ministério Público a privatividade do controle da probidade na administração pública”, ressaltou Moraes em seu voto.
Com essa decisão, retomou-se o modelo em que MP e ente lesado atuam como autores possíveis da ação, cada qual podendo ajuizá-la se julgar necessário, o que fortalece os mecanismos de combate à improbidade sem concentrar todo o poder em uma única instituição.
Suspensão de dispositivos polêmicos (ADI 7236)
Algumas das inovações trazidas pela Lei 14.230/21 foram recebidas como polêmicas e potencialmente excessivas, gerando reação do Ministério Público. A Associação Nacional dos Membros do MP (CONAMP) ajuizou a ADI 7236 questionando diversos dispositivos da nova lei que, em sua visão, dificultariam a responsabilização de agentes públicos em caso de abuso de poder.
Em dezembro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes (relator) concedeu medida cautelar nessa ADI, suspendendo a eficácia de vários dispositivos da lei reformada. Entre os pontos suspensos destacam-se:
Além desses, outros trechos foram suspensos cautelarmente (como dispositivos sobre prazos de prescrição, contagem da suspensão de direitos políticos e exigências envolvendo Tribunais de Contas), todos por aparentarem violar princípios constitucionais ou enfraquecer o combate à corrupção.
Essas suspensões, de caráter provisório, aguardam confirmação pelo Plenário do STF. Na prática, o Supremo indicou que não tolerará retrocessos que dificultem a proteção do patrimônio público ou criem privilégios indevidos – um sinal de equilíbrio entre a reforma legal e os princípios constitucionais de probidade.
Impactos práticos para a advocacia e a gestão pública
As mudanças na LIA e as decisões do STF trazem consequências diretas para advogados, agentes públicos e o Ministério Público. Em resumo:
Considerações finais
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) trouxe clareza e mais segurança para gestores públicos, ao mesmo tempo em que exige vigilância constante de todos os profissionais da área. A nova legislação oferece mais confiança para aqueles que agem de boa-fé, mas também impõe desafios, pois a responsabilização por dolo específico será mais rigorosa.
O resultado é um regime jurídico mais claro e justo: penas rigorosas para quem age com dolo e má-fé, e maior segurança jurídica para quem atua de boa-fé na administração pública. As mudanças, como a exigência de dolo específico, a taxatividade no art. 11 e a limitação da improbidade culposa, proporcionam um ambiente mais transparente e eficiente, onde os gestores públicos podem tomar decisões sem o medo de punições desproporcionais por erros não intencionais.
Ao mesmo tempo, a nova redação da Lei de Improbidade continua a fornecer ferramentas rigorosas para combater a corrupção e responsabilizar quem age de maneira desonesta e em prejuízo do erário. Estar atento a essas transformações é fundamental para assegurar a aplicação justa da lei, garantindo que os gestores públicos e advogados se adaptem adequadamente às novas exigências, e que a justiça seja feita no combate à improbidade.
Você já se deparou com essas mudanças em sua prática jurídica? Como acha que elas impactam a administração pública? Deixe seu comentário abaixo e compartilhe sua visão sobre o futuro da Lei de Improbidade Administrativa.
Referências (legislação, jurisprudência citadas e doutrina):
• Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa), com alterações da Lei Federal nº 14.230, de 25 de outubro de 2021.
• Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 37, §4º e art. 5º, incisos XXXV, XXXVI, LIV, LV e XL.
• Supremo Tribunal Federal – Tema 1.199 da Repercussão Geral, ARE 843.989/PR, julgamento em 18/08/2022 (rel. Min. Alexandre de Moraes) – tese fixada sobre retroatividade da Lei 14.230/21. migalhas.com.brmigalhas.com.br.
• STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.043/DF, julgamento em 31/08/2022 (rel. Min. Alexandre de Moraes) – decisão parcialmente procedente, DJe 05/09/2022. legis.senado.leg.brlegis.senado.leg.br.
• STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.236/DF, medida cautelar deferida em parte pelo rel. Min. Alexandre de Moraes em 27/12/2022 (DJe 01/02/2023). amprs.org.bramprs.org.br.
• Superior Tribunal de Justiça – decisões recentes em recursos especiais adequando jurisprudência à Lei 14.230/21, v.g. REsp 1.977.431/SC (1ª Turma, j. 06/12/2022) sobre taxatividade do art. 11stj.jus.brstj.jus.br; AgInt no AREsp 1.877.917/SP (2ª Turma, j. 26/04/2022) sobre retroatividade restrita a atos culposos stj.jus.br; REsp 1.882.532/SP (2ª Turma, j. 24/05/2022) sobre necessidade de urgência na indisponibilidade de bens stj.jus.brstj.jus.br, entre outras.
• SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
*Eduardo Medeiros
Professor de Direito. Pós-Graduado em Direito Processual Civil e Direito Administrativo. Advogado. Psicólogo. Especialista em Psicologia Clínica e Organizacional.
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