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Eduardo Medeiros*: Reforma da Lei de Improbidade Administrativa

Da Redação*
Publicado em 1 de maio de 2025 às 8:32

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Foto: Ascom

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A reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que passou a vigorar com a Lei 14.230/2021, trouxe mudanças profundas que impactam diretamente a gestão pública e as formas de responsabilização de agentes públicos.

Mas, afinal, o que essas transformações significam para a administração pública e os profissionais envolvidos? Essa reforma alterou profundamente os requisitos e procedimentos para caracterizar atos de improbidade, e trouxe questionamentos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A seguir, de forma acessível e objetiva, resumimos os principais pontos da reforma – do novo dolo específico exigido para improbidade às decisões do STF sobre retroatividade, taxatividade do art. 11, legitimidade ativa e suspensão de dispositivos polêmicos – destacando também os impactos práticos para advogados, gestores públicos e o Ministério Público.

Dolo específico e fim da improbidade culposa

A Lei 14.230/2021 passou a exigir a comprovação de dolo específico (intenção deliberada) para que um ato seja considerado improbidade administrativa. Em outras palavras, condutas meramente culposas – aquelas decorrentes de imprudência, imperícia ou negligência, sem intenção ilícita – deixaram de configurar atos de improbidade.

Agora, é preciso demonstrar que o agente público agiu com vontade livre e consciente de alcançar um resultado ilícito, não bastando a mera voluntariedade do ato nem o simples exercício da função pública. Inclusive, a lei esclarece que divergências na interpretação da lei não podem ser punidas como improbidade.

Essa mudança reflete o entendimento de que a improbidade está vinculada à desonestidade e à má-fé, e não a erros administrativos, desde que não haja a intenção de lesar a administração.

O próprio STF, em outubro de 2024, confirmou que o dolo é indispensável para caracterizar improbidade, declarando inconstitucional a punição por improbidade na modalidade culposa. Agir com negligência ou erro pode gerar responsabilizações administrativas ou civis, mas não configura a desonestidade necessária para o ato de improbidade.

Desde a criação da LIA em 1992, a possibilidade de punir agentes por mera culpa gerava controvérsia, sendo criticada por impor sanções severas a erros sem má-fé e inibir a iniciativa de gestores públicos, chegando a “sepultar carreiras” por equívocos administrativos. A exigência de dolo específico veio justamente corrigir esse excesso, focando o combate à corrupção nos casos de conduta desonesta intencional.

Retroatividade da norma mais benéfica (STF – Tema 1.199)

Uma questão importante era saber se essa nova exigência de dolo (mais benéfica aos réus) valeria para fatos ocorridos antes de 2021. Em agosto de 2022, no Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989/PR), o STF definiu que a eliminação da improbidade culposa se aplica retroativamente aos casos pendentes de julgamento definitivo, por se tratar de norma sancionatória mais benigna.

Isso significa que atos praticados sem dolo, anteriormente tratados como improbidade, não podem mais resultar em condenação caso o processo ainda não tenha transitado em julgado – o juiz deve avaliar se há evidências de dolo e, não havendo, o agente não será condenado por improbidade.

Por outro lado, o STF ressaltou o respeito à coisa julgada: condenações por improbidade culposa já transitadas em julgado não são desfeitas automaticamente pela nova lei, em observância à segurança jurídica e à regra de que a lei não retroage para atingir a coisa julgada. Em suma, houve retroatividade benéfica mitigada: beneficia os casos em andamento (ainda sem decisão final), mas não alcança decisões definitivas já consolidadas.

Fim da cláusula geral de violação a princípios (taxatividade do art. 11)

Outra mudança de grande impacto foi no artigo 11 da LIA, que trata dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. Antes da reforma, o art. 11 continha uma cláusula geral aberta – ou seja, apresentava exemplos de atos contrários aos princípios, mas admitia enquadrar como improbidade qualquer ação ou omissão que violasse princípios da administração, mesmo que não estivesse expressamente listada.

Essa cláusula genérica (“violação aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições…”) funcionava como um numerus apertus, permitindo punir por improbidade condutas não tipificadas de forma específica, com base apenas na ofensa a princípios administrativos.

Depois da Lei 14.230/2021, essa lógica mudou. O novo texto do art. 11 fechou o rol de atos de improbidade contra princípios, tornando-o taxativo (numerus clausus). Agora, só haverá improbidade por ofensa a princípios se a situação se enquadrar em alguma das hipóteses específicas previstas nos incisos do art. 11.

Em outras palavras, acabou a cláusula geral do caput do art. 11; não basta mais alegar violação genérica a princípios, é preciso que a conduta do agente esteja tipificada em um dos incisos do artigo. A reforma inclusive revogou incisos antigos (como o inciso I original do art. 11) e redefiniu as condutas típicas nesse artigo.

Essa mudança traz mais objetividade e previsibilidade, evitando interpretações muito amplas – doravante, a violação a princípios só será improbidade administrativa se corresponder a uma conduta expressamente catalogada na lei.

Legitimidade ativa: Ministério Público e entes lesados

A reforma de 2021 também tocou na legitimidade para propor ações de improbidade. O texto da Lei 14.230/21 atribuiu exclusividade ao Ministério Público (MP) para ajuizar ações de improbidade e firmar acordos de não persecução cível, retirando essa prerrogativa dos entes públicos lesados (União, estados, municípios etc.).

Até então, vigorava a chamada legitimidade concorrente ou disjuntiva: o MP e a pessoa jurídica lesada pelo ato de improbidade podiam, cada qual, ingressar com a ação. Com a mudança, procuradores de Estado, municipais ou advocacias públicas ficaram impedidos de acionar a LIA por conta própria, o que gerou reação.

Em 31/08/2022, o STF, ao julgar as ADIs 7042 e 7043, derrubou essa exclusividade do MP. Por maioria de votos, a Corte declarou inconstitucional a supressão da legitimidade dos entes lesados e restabeleceu a legitimidade concorrente para propositura das ações de improbidade. Assim, o órgão ou ente público prejudicado também pode propor a ação de improbidade e firmar acordos, sem depender exclusivamente do Ministério Público.

O relator, ministro Alexandre de Moraes, destacou que a própria Constituição Federal, no art. 129, §1º, prevê que a legitimação do MP não impede a de terceiros na defesa do patrimônio público. Eliminar a capacidade do ente público de buscar a tutela de seu próprio patrimônio afrontaria a lógica constitucional e restringiria o acesso à Justiça. “Não é possível, por norma legal, conceder ao Ministério Público a privatividade do controle da probidade na administração pública”, ressaltou Moraes em seu voto.

Com essa decisão, retomou-se o modelo em que MP e ente lesado atuam como autores possíveis da ação, cada qual podendo ajuizá-la se julgar necessário, o que fortalece os mecanismos de combate à improbidade sem concentrar todo o poder em uma única instituição.

Suspensão de dispositivos polêmicos (ADI 7236)

Algumas das inovações trazidas pela Lei 14.230/21 foram recebidas como polêmicas e potencialmente excessivas, gerando reação do Ministério Público. A Associação Nacional dos Membros do MP (CONAMP) ajuizou a ADI 7236 questionando diversos dispositivos da nova lei que, em sua visão, dificultariam a responsabilização de agentes públicos em caso de abuso de poder.

Em dezembro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes (relator) concedeu medida cautelar nessa ADI, suspendendo a eficácia de vários dispositivos da lei reformada. Entre os pontos suspensos destacam-se:

  • Limitação da perda da função pública: A nova lei estabelecia que, em caso de condenação, o agente perderia apenas o cargo ou função que exercia no momento do ato ilícito (ou seja, se ele já ocupasse outro cargo quando condenado, não o perderia).
  • Essa limitação foi suspensa. O STF entendeu que a perda do cargo deve ocorrer independentemente de qual cargo o réu ocupa à época da condenação, alcançando de forma ampla quaisquer funções públicas então exercidas, sob pena de se criar brechas para impunidade.
  • Com a cautelar, prevalece, por ora, a interpretação de que a sanção de perda da função pública pode afetar cargos atuais do condenado, não só aquele em que ele praticou a improbidade.
  • Exclusão dos partidos políticos da LIA: A Lei 14.230/21 inseriu o art. 23-C na LIA, dispondo que atos praticados por partidos políticos ou suas fundações, envolvendo recursos públicos, seriam regidos apenas pela Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995) – em outras palavras, partidos e fundações partidárias ficariam fora do alcance da Lei de Improbidade. Esse dispositivo também foi suspenso pelo STF.
  • O entendimento foi de que tal regra criaria uma espécie de imunidade ou tratamento privilegiado injustificado aos partidos, ferindo o princípio constitucional da isonomia. Com a suspensão, partidos políticos continuam podendo responder por improbidade administrativa, além das regras da Lei dos Partidos, até que haja decisão final.

Além desses, outros trechos foram suspensos cautelarmente (como dispositivos sobre prazos de prescrição, contagem da suspensão de direitos políticos e exigências envolvendo Tribunais de Contas), todos por aparentarem violar princípios constitucionais ou enfraquecer o combate à corrupção.

Essas suspensões, de caráter provisório, aguardam confirmação pelo Plenário do STF. Na prática, o Supremo indicou que não tolerará retrocessos que dificultem a proteção do patrimônio público ou criem privilégios indevidos – um sinal de equilíbrio entre a reforma legal e os princípios constitucionais de probidade.

Impactos práticos para a advocacia e a gestão pública

As mudanças na LIA e as decisões do STF trazem consequências diretas para advogados, agentes públicos e o Ministério Público. Em resumo:

  • Para os advogados (defesa de agentes públicos): O novo cenário oferece bases mais sólidas para a defesa de gestores e servidores acusados. Será possível, por exemplo, alegar a inexistência de dolo específico como tese central – caso não haja prova de intenção ilícita clara, não há improbidade.
  • Também se pode requerer a extinção de processos em curso fundados apenas em culpa, à luz da retroatividade benéfica reconhecida pelo STF. A definição taxativa dos atos de improbidade por violação a princípios permite contestar acusações genéricas: se a conduta imputada não se enquadrar em nenhum inciso do art. 11, dificilmente poderá prosperar uma ação. Em suma, a defesa ganha mais segurança jurídica para rebater acusações infundadas ou desproporcionais, focando nos elementos estritamente previstos em lei.
  • Para os gestores e administradores públicos: As alterações trazem maior tranquilidade e clareza para o exercício da função pública. Decisões ou atos administrativos sem má-fé, ainda que eventualmente equivocados, já não levarão ao rótulo de “improbidade” – o que reduz o chamado “O apagão das canetas, termo cunhado por Rodrigo Valgas dos Santos em sua obra ‘Direito Administrativo do Medo’, descreve a paralisia decisória que ocorre na administração pública, onde gestores evitam tomar decisões importantes por medo de sofrerem responsabilizações, mesmo quando essas decisões são essenciais para o bom andamento da gestão pública.
  • O autor aponta que esse fenômeno impede a eficiência da administração pública, pois os servidores acabam não atuando de maneira eficaz devido ao receio de serem processados ou penalizados. A reforma da Lei de Improbidade Administrativa, ao exigir dolo específico e excluir a improbidade culposa, vem justamente para mitigar esse problema, proporcionando mais segurança para gestores públicos que atuam de boa-fé.
  • A mudança busca garantir que erros não intencionais ou falhas administrativas não resultem em penalidades desproporcionais, incentivando uma gestão pública mais eficiente e responsável, sem o temor de punições por falhas não dolosas.
  • Para o Ministério Público: O MP permanece como protagonista no combate à improbidade, porém terá de ajustar sua atuação aos novos parâmetros legais. As promotorias e procuradorias precisarão reunir provas mais robustas de intenção dolosa para propor ações, dado que alegações baseadas somente em negligência não prosperam mais.
  • Haverá também necessidade de coordenação com os entes lesados, já que estes recuperaram o poder de ajuizar ações – em muitos casos, o MP e a entidade pública deverão atuar em conjunto ou ao menos alinhar estratégias, evitando sobreposições ou conflitos na defesa do patrimônio público.
  • A possibilidade de celebração de acordos de não persecução cível (espécie de acordo de leniência na esfera da improbidade) torna-se um instrumento relevante: tanto o MP quanto o ente lesado podem negociá-los, buscando ressarcir danos ao erário e corrigir irregularidades de forma mais ágil, quando isso se mostrar mais efetivo que um longo litígio.
  • Importante notar que a reação do MP às partes mais controversas da reforma – por exemplo, questionando dispositivos que dificultariam a punição de agentes ímprobos – evidenciou o compromisso da instituição em manter altos os padrões de probidade.
  • Com as liminares do STF na ADI 7236, o MP assegurou que não se criassem privilégios injustificados (como a exclusão dos partidos) e que sanções continuassem efetivas (como a perda de função extensiva), reforçando seu papel de guardião do interesse público. Em suma, o Ministério Público segue atento e atuante, adaptando-se às novas regras sem abrir mão do rigor contra a corrupção.

Considerações finais

A reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) trouxe clareza e mais segurança para gestores públicos, ao mesmo tempo em que exige vigilância constante de todos os profissionais da área. A nova legislação oferece mais confiança para aqueles que agem de boa-fé, mas também impõe desafios, pois a responsabilização por dolo específico será mais rigorosa.

O resultado é um regime jurídico mais claro e justo: penas rigorosas para quem age com dolo e má-fé, e maior segurança jurídica para quem atua de boa-fé na administração pública. As mudanças, como a exigência de dolo específico, a taxatividade no art. 11 e a limitação da improbidade culposa, proporcionam um ambiente mais transparente e eficiente, onde os gestores públicos podem tomar decisões sem o medo de punições desproporcionais por erros não intencionais.

Ao mesmo tempo, a nova redação da Lei de Improbidade continua a fornecer ferramentas rigorosas para combater a corrupção e responsabilizar quem age de maneira desonesta e em prejuízo do erário. Estar atento a essas transformações é fundamental para assegurar a aplicação justa da lei, garantindo que os gestores públicos e advogados se adaptem adequadamente às novas exigências, e que a justiça seja feita no combate à improbidade.

Você já se deparou com essas mudanças em sua prática jurídica? Como acha que elas impactam a administração pública? Deixe seu comentário abaixo e compartilhe sua visão sobre o futuro da Lei de Improbidade Administrativa.

Referências (legislação, jurisprudência citadas e doutrina):

• Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa), com alterações da Lei Federal nº 14.230, de 25 de outubro de 2021.
• Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 37, §4º e art. 5º, incisos XXXV, XXXVI, LIV, LV e XL.
• Supremo Tribunal Federal – Tema 1.199 da Repercussão Geral, ARE 843.989/PR, julgamento em 18/08/2022 (rel. Min. Alexandre de Moraes) – tese fixada sobre retroatividade da Lei 14.230/21. migalhas.com.brmigalhas.com.br.
• STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.043/DF, julgamento em 31/08/2022 (rel. Min. Alexandre de Moraes) – decisão parcialmente procedente, DJe 05/09/2022. legis.senado.leg.brlegis.senado.leg.br.
• STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.236/DF, medida cautelar deferida em parte pelo rel. Min. Alexandre de Moraes em 27/12/2022 (DJe 01/02/2023). amprs.org.bramprs.org.br.
• Superior Tribunal de Justiça – decisões recentes em recursos especiais adequando jurisprudência à Lei 14.230/21, v.g. REsp 1.977.431/SC (1ª Turma, j. 06/12/2022) sobre taxatividade do art. 11stj.jus.brstj.jus.br; AgInt no AREsp 1.877.917/SP (2ª Turma, j. 26/04/2022) sobre retroatividade restrita a atos culposos stj.jus.br; REsp 1.882.532/SP (2ª Turma, j. 24/05/2022) sobre necessidade de urgência na indisponibilidade de bens stj.jus.brstj.jus.br, entre outras.
• SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

*Eduardo Medeiros
Professor de Direito. Pós-Graduado em Direito Processual Civil e Direito Administrativo. Advogado. Psicólogo. Especialista em Psicologia Clínica e Organizacional.

 

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