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Especial. Frei Betto: “Lula é um maestro, mas governo não encontrou o tom”

Da Redação*
Publicado em 18 de maio de 2024 às 17:40

Frei Betto

Foto: Karime Xavier/folhapress

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O escritor e teólogo Frei Betto levou para um encontro com o amigo Lula (PT), na quarta-feira (8), em Brasília, suas impressões sobre o atual governo do presidente. Horas mais tarde, recebeu a reportagem da Folha em São Paulo e usou referências musicais para expor sua opinião.

Comparou Lula a um maestro “que toca de ouvido” e disse que ele não cometeu nenhum erro grave em sua terceira passagem pelo Planalto, mas falta afinar o governo para “encontrar o tom” da comunicação.

Nome histórico do campo progressista e apoiador do PT desde sua fundação —embora nunca tenha se filiado—, o frade dominicano agitou grupos de companheiros nas últimas semanas com um artigo em que criticou a “esquerda de cabelos brancos” por ter falhado na renovação de ideias e quadros.

A meses de completar 80 anos, ele diz não ter respostas para a crise, mas querer provocar reflexões, válidas também para a Igreja Católica. Frei Betto evitou falar da visita a Lula sob a justificativa de que guardaria os detalhes para o artigo semanal que publicaria em seu site.

“Nossa amizade sempre foi muito fraternal”, disse.

Com o pé na estrada, ele está lançando seu 79º livro, “Jesus Rebelde” (ed. Vozes), e terá a vida retratada em cinco filmes —quatro documentários e uma ficção. O documentário “A Cabeça Pensa Onde os Pés Pisam”, de Evanize Sydow e Américo Freire, sobre sua atuação na educação popular, acaba de estrear.

Pergunta – O que levou o sr. a escrever que a “turma dos cabelos brancos” precisa fazer autocrítica e “ter a coragem de abrir espaços às novas gerações”?

Frei Betto – Faço muitos encontros e palestras pelo Brasil e comecei a notar poucos jovens. O artigo é uma espécie de chamado para o pessoal progressista, tanto na política quanto na religião, se dar conta do que está havendo.

Que a juventude está noutra. A gente está envelhecendo e não está conseguindo reproduzir uma geração que abrace a Teologia da Libertação ou as teses progressistas de reformas estruturais.

Com exceção do MST [movimento de sem-terra] e do MTST [de sem-teto], que fazem trabalho de base, não há reprodução. Muitos quadros e militantes foram absorvidos pelas estruturas de governo, sejam municipais, estaduais ou federal, e não houve continuidade com a base. Está aí o fiasco do 1º de Maio.

P.- E qual a sua explicação para o ato vazio no Dia do Trabalhador, que gerou reclamação do próprio Lula?

F. B. – [Problema de] comunicação. Só fiquei sabendo que o Lula estaria lá depois que aconteceu o ato. E eu me considero um sujeito relativamente bem-informado.

Além disso, os movimentos em geral estão muito debilitados. E não está havendo ainda uma boa sintonia entre governo federal e movimentos sindicais, populares e pastorais em geral, de todas as religiões. Está faltando uma melhor articulação nesse sentido, mas o governo tem feito muitas coisas e tem avançado.

P.- Onde?

F. B. – Primeiro, é impressionante como, em qualquer catástrofe que ocorre neste país, o governo está lá presente. O Lula já foi duas vezes para o Rio Grande do Sul, mandou o ministério para lá, tomou várias medidas. Outro exemplo é a estrutura que montou na Amazônia para reprimir o garimpo ilegal e reduzir o desmatamento. Há também a valorização do salário-mínimo, a isenção no Imposto de Renda.

O governo tem caminhado. Se você me perguntar onde é que o governo errou feio, eu diria que em nada.

P.- Para os erros que o sr. vê, que caminhos propõe?

F. B. – Como eleitor, como torcedor por esse governo, acredito que deveria haver uma melhor comunicação, mais didática. O governo tem um poder de comunicação muito grande, só que ainda não encontrou o tom, a maneira.

E, sobretudo, na trincheira digital, você não pode improvisar.

Eu acho que o governo está fazendo muito mais do que a população está sabendo.

P.- Qual deveria ser o papel de Lula na comunicação?

F. B. – O presidente Lula é o maestro da orquestra. O papel dele é coordenar. Agora… Ele fica, coitado, tem que apagar um incêndio a cada dia. E a composição do ministério depende de acordos políticos, de concessões, coalizões. A coisa não é fácil. Na política não existe o ideal. Existe o possível.

O governo faz o que pode. O Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, uma em cada perna: o Banco Central e o Congresso. Ele dá nó em pingo d’água, continua dando, é um gênio. Ele realmente é um cara que toca de ouvido a orquestra e faz funcionar a música, mas é muito difícil.

P.- Como vê as críticas a Lula quanto à responsabilidade fiscal e ao controle das contas públicas?

F. B. – O que afasta o investidor são juros altos, que fazem o capital ir para a área especulativa, e não a produtiva. Para mim, a grande trava na questão econômica é a índole atual do Banco Central. Ela é antipovo brasileiro, em favor da Faria Lima. E dane-se a miséria. Não tem a menor sensibilidade social.

O que estraga o Brasil é a nossa elite, que é uma elite colonizada, que não saiu da casa-grande até hoje, voltada unicamente para os seus privilégios. É uma elite que tem ódio, raiva e nojo do povo. Só pensa em termos do seu paraíso fiscal, nunca pensou em criar uma nação com dignidade e decência.

P.- No seu artigo, o sr. cita o caso de Marta Suplicy, que teve de ser resgatada pelo PT para a vice de Guilherme Boulos, a quem o sr. apoia na corrida à Prefeitura de São Paulo. Como vê a justificativa de que a experiência dela é um trunfo eleitoral?

F. B. – É também, mas há um fator maior: ela atrai voto, e muito. É considerada nas pesquisas a melhor prefeita que São Paulo já teve.

P.- E o sr. a perdoa pelo que são considerados erros dela, como votar pelo impeachment de Dilma?

F. B. – Quem de nós não tem suas contradições? Ela teve as dela. Ela que tem que explicar isso. Eu continuo dizendo que foi contraditório com a história política dela.

P.- Vê conexão entre a falta de renovação da esquerda e a perda de popularidade da Igreja Católica?

F. B. – É evidente que sim. Esse neoconservadorismo está impregnando a Igreja Católica, que hoje é um corpo esdrúxulo: tem uma cabeça progressista, que é o [papa] Francisco, mas a maioria dos padres e seminaristas da safra atual é de formação conservadora. Eles são mais voltados para a liturgia e a paróquia e alheios à opção pelos pobres. O fundamentalismo no catolicismo é tão forte quanto entre os evangélicos.

P.- O fato de o líder ser progressista faz então o sr. crer num processo que leve a uma nova igreja?

F. B. – Não, eu ainda não tenho essa esperança. A resistência do corpo eclesiástico ao próprio Francisco é muito forte e permanece o clericalismo, em que tudo é centrado na figura do padre.

Numa igreja evangélica, as pessoas têm protagonismo e o culto é muito imagético. Numa igreja católica, os leigos são considerados seres de segunda classe e, em geral, a missa é aborrecida. A comunidade evangélica resgata a autoestima da pessoa, e a católica só fazia isso nas Comunidades Eclesiais de Base. Mas, como deixaram de ter importância para o episcopado, elas refluíram.

P.- Por que a direita tem sido tão atrativa e tão bem-sucedida em avançar não só no Brasil, mas também fora?

F. B. – Por dois fatores, ambos ligados à inovação tecnológica. A direita é dona das plataformas, está aí o Elon Musk [dono do X, antigo Twitter] para não deixar eu mentir. E, em segundo lugar, porque as big techs descobriram a forma de tornar o usuário dependente químico.

E o que faz a pessoa ficar ligada na rede? O ódio. O ódio mobiliza, movimenta. As redes digitais, que eu me recuso a chamar de sociais porque criam mais hostilidade que sociabilidade, são um dos fenômenos que provocaram mudança de conjuntura. E nós, progressistas, ainda não encontramos o passo certo.

P.- Além da questão tecnológica, o que faz com que as ideias e pautas da direita tenham penetração?

F. B. – Acho que essas pautas têm mais facilidade de deflagrar o nosso lado perverso, nosso lado emocional agressivo. E isso está sendo acionado por essas novas tecnologias e pelo comportamento hostil.

P.- O sr. não citou Jair Bolsonaro em nenhum momento. Por quê?

F. B. – Eu acho que ele nem merece.

P.- Mas ele e o bolsonarismo continuam aí, com força política e eleitoral, e o sr. já escreveu que “é real o risco de a direita voltar à Presidência em 2026”. Como evitar?
F. B. – O que precisa ser feito é o governo Lula dar muito certo, conseguir levar suas pautas à prática, favorecer mais a comunicação e fortalecer a defesa das suas teses ou dos seus programas, principalmente nas redes digitais.

P.- Que tipo de direita, na sua visão, é necessária hoje no Brasil?

F. B. – Por mim, não deveria existir direita. Eu, se fosse decidir a Constituição de um país, proibiria qualquer partido que defendesse a supremacia do capital sobre os direitos humanos. Ponto. É assim que eu sou democrata.
P.- Alguém de direita, ao ouvi-lo, não pode falar que isso também é discurso antidemocrático?

F. B. – Não importa. O que eu mais estou acostumado é que vão falar. Mas essa é a minha posição como cristão.

P.- Viu a fala de Michelle Bolsonaro na avenida Paulista em que ela pregou misturar política e religião?

F. B. – Religião e política são indivisíveis na vida pessoal de cada um, e toda religião é visceralmente política. Não há religião neutramente política. Qual é a sabedoria? Não confessionalizar o Estado e não partidarizar as religiões.

Eu jamais falei no púlpito “vote nesse ou naquele partido ou candidato”. Mas eu falo, sim, “temos que combater o capitalismo, fortalecer as forças sociais, fazer opção pelos pobres”. Só que quem não gosta de ouvir isso fala que é [discurso] político.

RAIO-X – CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 79

Frade dominicano, teólogo, jornalista e escritor, nasceu em Belo Horizonte e mora em São Paulo. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 79 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional

*JOELMIR TAVARES/folhapress

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