Fechar
O que você procura?
Blogs e Colunas
Professor Titular aposentado do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Continua depois da publicidade
Em meio às reminiscências da minha infância e adolescência na avenida Barão do Rio Branco, no bairro da Bela Vista, em Campina Grande (PB), veio-me à mente a lembrança do “papa-sereno”. Lembro-me nitidamente das noites e madrugadas frias, quando o som de um apito soava como se fosse um lembrete de que havia alguém velando o bairro enquanto dormíamos.
Movido pela curiosidade, consultei o Dicionário do Nordeste, de autoria de Fred Navarro, sobre o significado do verbete “papa-sereno”, e nada encontrei. Busquei o termo em ferramentas de Inteligência Artificial (IA) e também nada encontrei.
Mudei, então, a estratégia. Passei a perguntar diretamente a pessoas da minha faixa etária e do meu círculo de convivência em Campina Grande. Pouquíssimos sabiam; a maioria sequer fazia ideia do que se tratava. Alguns até arriscaram um palpite: seria um pássaro?
Nada disso! O “papa-sereno” era, na verdade, um guarda-noturno, um vigia, que durante as noites e madrugadas percorria as ruas do bairro, vestido com um grosso capote para se proteger do frio e do sereno. Daí o porquê do termo “papa-sereno”.
Porém, o que mais caracterizava esse vigia era o som de um apito que ele soprava para garantir que estava acordado e fazendo a ronda, desempenhando sua função de afugentar os ladrões. Em geral, o “papa-sereno” não portava arma de fogo; sua defesa se resumia a um cassetete e a muita coragem.
Embora a atividade do “papa-sereno” auxiliasse a polícia, ele não recebia salário. Trabalhava a semana inteira, sem qualquer vínculo empregatício. Aos sábados, apresentava-se, de casa em casa, para receber qualquer quantia que, de forma espontânea, os moradores doavam a título de colaboração.
O trabalho do “papa-sereno” era duro, insalubre, perigoso, pouco reconhecido e de baixa remuneração. Com o passar do tempo, esse tipo de atividade tornou-se raro, mas ainda hoje existe em alguns setores de bairros campinenses.
No passado, é provável que os “papas-serenos”, durante suas rondas noturnas, tenham presenciado fatos pitorescos: bêbados sem acertar o caminho de casa, homens saindo furtivamente das casas das amantes, ladrões de galinhas e, talvez, assombrações, como o “homem sem cabeça”, que teria sido visto na rua Coronel José Vicente.
Mas nada se compara a um causo contado pelo meu amigo Zé Lacraia, um colega que morava na mesma rua que eu. Vamos ao relato!
Certa noite, por volta das vinte e duas horas, alguns jovens conversavam na esquina de uma mercearia localizada no cruzamento da avenida Rio Branco com a rua Cônego Pequeno. No meio da conversa, um teve uma ideia:
– Vamos fazer uma visita a um colega marchante, que abatia bodes, porcos e carneiros para vender a carne na Feira da Prata? Chegando lá, a gente distrai a atenção dele e um de nós furta um fígado de porco para assar e comer com cachaça.
E assim foi feito.
A noite estava fria e uma leve garoa caía no alto da Bela Vista. De volta à esquina, a turma teve dificuldade de acender uma fogueirinha para assar o fígado furtado.
Havia sal na mercearia e, para ajudar a fazer o fogo, Zé Lacraia, que morava perto, trouxe um litro de álcool que ele usava para preparar verniz artesanal.
Não demorou para que o “papa-sereno”, em sua ronda, se aproximasse do grupo e perguntasse:
– O que vocês estão fazendo aí?
– Estamos assando um fígado de porco para servir de tira-gosto, disse Zé Lacraia.
– Posso tomar uma lapada dessa cana para enfrentar o frio? Disse o guarda-noturno.
– Pode, disse Zé Lacraia, entregando-lhe um pedaço de pão com um pedaço do fígado do porco dentro e uma dose de álcool como se fosse cachaça brejeira.
O guarda tomou a dose da suposta “brejeira”, fez uma careta danada, mordeu o pão com o fígado do porco, soprou o apito e saiu gritando com a voz rouca:
– “Eita, cana forte da mulesta!”.
Atualmente, continuo morando no bairro da Bela Vista; porém, quando acordo no meio da madrugada, já não escuto o apito do papa-sereno. Aquele som característico desapareceu com o tempo, mas a lembrança da atuação desse profissional permanece viva em minha memória.
Atenção: Os artigos publicados no ParaibaOnline expressam essencialmente os pensamentos, valores e conceitos de seus autores, não representando, necessariamente, a linha editorial do portal, mas como estímulo ao exercício da pluralidade de opiniões.
Continua depois da publicidade
© 2003 - 2025 - ParaibaOnline - Rainha Publicidade e Propaganda Ltda - Todos os direitos reservados.