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Saúde e Bem-estar
Foto: Pixabay
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Em meio à rotina exaustiva de consultas, exames e sessões de quimioterapia, Maria José Duarte Diniz, 53, recebeu um email que a paralisou: seu plano de saúde seria rescindido em 60 dias. Ela está em tratamento contra um câncer de mama, diagnosticado no ano passado.
“Fiquei apavorada. Pensei: como vou fazer agora? Ir para o SUS no meio da quimio? Parar meu tratamento? Foi desesperador”, conta ela, beneficiária de um plano coletivo empresarial da Hapvida NotreDame Intermédica, a maior operadora de planos de saúde da América Latina.
Maria José diz que passou dias ao telefone tentando entender e reverter a decisão. “Ninguém na operadora sabia explicar. Diziam que era ‘reestruturação interna’. Foi um descaso enorme.”
Ela recorreu à Justiça e obteve uma liminar que suspendeu o cancelamento do plano, mas afirma que a operadora não acatou a decisão. “Na segunda [8], tinha sessão de imunoterapia que foi suspensa porque o plano ainda aparecia como cancelado.”
O médico Mauro Irizawa, 71, passou por uma situação semelhante com a mesma operadora. Ele enfrenta um câncer de pulmão e, após a cirurgia, iniciou um tratamento com quimioterapia oral, com custo mensal em torno de R$ 33 mil.
No fim de outubro, porém, o filho de Irizawa diz ter recebido um email de aviso de cancelamento do plano coletivo empresarial que cobre o pai e a mãe desde 2023, ao custo de R$ 6.500 mensais. “Meu pai está em tratamento contínuo, sem previsão de término. Eles sabem disso”, diz o filho, Ian Irizawa.
A família também recorreu à Justiça e obteve liminar garantindo a continuidade da cobertura. Mas, segundo o filho, a operadora não estava cumprindo a liminar. “O plano continua cancelado”, afirmou Ian na terça-feira (9).
Segundo ele, a situação fragilizou ainda mais o pai. “No começo nem contamos para ele para evitar mais estresse. Depois ele precisou saber. É desumano impor esse peso a um paciente oncológico.”
Na quarta-feira (9), a Folha procurou a Hapvida NotreDame Intermédica, relatou sobre os dois casos e no mesmo dia a empresa entrou em contato com os dois pacientes para informar que seus contratos estavam ativos.
Em nota enviada na quinta-feira (10), a operadora reforçou que os contratos de Maria José e Mauro Irizawa estão ativos e que não houve interrupção nos respectivos tratamentos oncológicos. “A empresa reforça que mantém contato direto com ambos os beneficiários por meio da diretoria de acolhimento, a fim de prestar toda a assistência necessária e assegurar a continuidade e a regularidade da atenção à saúde.”
Os casos dos dois pacientes oncológicos não são exceções. Usuários de planos de saúde pelo país têm enfrentado avisos de cancelamento de planos, terapias negadas e serviços descredenciados durante tratamentos de câncer.
3 No período, as reclamações sobre rescisões unilaterais envolvendo o câncer também tiveram uma escalada. Passaram de 75, em 2020, para 188 (até novembro). Ano passado, foram 286.
Em nota, a ANS diz que as queixas têm como base os relatos dos beneficiários, sem o exame de mérito sobre eventual infração da operadora, que só é feito após a análise individual das demandas. A agência afirma que também atua na intermediação de conflitos entre beneficiários e operadoras.
Relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), divulgado em novembro último, mostra que, entre agosto de 2014 e julho de 2025, foram ajuizadas 123 mil novas ações contra planos de saúde na primeira instância e outras 108 mil na segunda. São Paulo concentrou 93 mil ações.
Desse total, tratamentos médicos e remédios respondem pela maioria das ações (69%). Em uma amostra de 1.992 ações, 16,5% tratavam de demandas específicas de pacientes oncológicos, representando 329 casos. O percentual é maior do que o de ações envolvendo o autismo (10%), com 202 casos.
Diversas decisões judiciais já reiteraram que o plano não pode cancelar o contrato de um paciente em tratamento oncológico. Os argumentos se baseiam na lei 9.656, que proíbe a interrupção de cobertura durante internação.
O entendimento é que o tratamento equivale, na prática, a uma internação prolongada.
Segundo a advogada Renata Vilhena, do escritório Vilhena Silva Advogados, tem sido cada vez mais comum o cancelamento logo após o diagnóstico ou no início da quimioterapia. “É um movimento para afastar pacientes que passaram a gerar custo”, diz.
A consequência direta é a corrida ao Judiciário. A taxa de sucesso das ações que pedem a manutenção do plano durante o tratamento de câncer é de 87%, em média. “O Judiciário é muito firme nessas decisões. Os tribunais entendem que interromper cobertura oncológica é violar o direito à vida”, explica. Para ela, há fragilidade da regulação, e a ANS tem falhado em coibir práticas abusivas.
Em nota, a ANS diz que planos de contratação coletiva (empresarial ou por adesão) podem ser rescindidos pela operadora após o período de vigência inicial (12 meses), desde que observadas as condições contratuais e a notificação prévia ao contratante. Nesse caso, o contrato como um todo é cancelado e todos os beneficiários excluídos do plano.
Já caso de cancelamento pontual de um beneficiário de um contrato coletivo, a operadora só pode exclui-lo em casos como fraude, perda do vínculo do titular (demissão, por exemplo) e inadimplência. A agência reforça que a legislação do setor de planos proíbe a seleção de risco, sendo ilegal a recusa de adesão ou a exclusão de beneficiários por motivo de idade, deficiência ou doença preexistente.
Estudo publicado pelo IESS (Instituto de Estudos da Saúde Suplementar) mostra que entre 2020 e 2024 o volume de ações contra planos de saúde aumentou 112%, alcançando 298,7 mil novos processos no último ano, o equivalente a uma nova ação a cada 1 minuto e 45 segundos.
A judicialização consumiu R$ 17,1 bilhões entre 2019 e 2023. Segundo dados da ANS, o setor movimentou R$ 350 bilhões em receitas em 2024, com lucro líquido de R$ 11,1bilhões.
Bruno Sobral, diretor-executivo da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), atribui a alta da judicialização principalmente às mudanças regulatórias de 2022, que ampliaram a interpretação do rol de procedimentos da ANS, alteraram regras de cobertura e reduziram a capacidade de discussão sobre o que deve ou não ser coberto.
No caso da oncologia, Sobral explica que o setor combina alto custo, tratamentos cada vez mais complexos e uma grande assimetria de informação entre o médico do paciente e o da operadora.
“Muitos medicamentos são prescritos em regime off-label [fora das recomendações da bula], sem comprovação robusta de efetividade para determinadas indicações, o que gera divergências técnicas e questionamentos sobre cobertura.”
Outro ponto crítico, diz ele, é o uso de medicamentos oncológicos orais, que, por força de lei, são os únicos de uso domiciliar cuja cobertura é obrigatória. Esses tratamentos de alto custo, explica, dificultam o acompanhamento pela operadora e aumentam as tensões sobre indicação, resultados e custo-efetividade.
Segundo Renata Vilhena, a judicialização enfrenta hoje um novo obstáculo: o descumprimento das ordens judiciais pelas operadoras. A advogada diz que há planos ignorando liminares que determinam a reativação imediata do contrato ou o restabelecimento do tratamento. “Muitas empresas só obedecem depois que o juiz bloqueia valores da conta da operadora ou ameaça de prisão os dirigentes”, afirma.
* CLÁUDIA COLLUCCI (FOLHAPRESS)
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