Saúde e Bem-estar

Especial. Drauzio Varella: Brasil deve se inspirar nos transplantes

Da Redação*
Publicado em 5 de dezembro de 2025 às 8:44

drauzio varela

Foto: Bruno Santos/Folhapress

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O médico e escritor Drauzio Varella, 82, passou a integrar o movimento pela legalização da morte assistida no Brasil, liderado pela associação civil Eu Decido, que reúne mais de cem profissionais de diversas áreas, como médicos, juristas, psicólogos, comunicadores e artistas.

A adesão de Drauzio coincide com a entrada do país na World Federation Right to Die Societies, que reúne nações que já aprovaram ou que discutem o direito à autonomia no fim da vida. Hoje a prática é permitida, em diferentes modalidades, em 16 países e 11 estados americanos. Outros quatro países estão em vias de legalizar o tema.

Para Drauzio, que lidou com a morte desde a infância e passou décadas acompanhando pacientes oncológicos, com Aids e detentos no fim da vida, a lacuna ética brasileira já ultrapassou o limite do razoável: “Prolongamos sofrimentos que não fazem sentido. Precisamos enfrentar esse dilema”, diz ele, também colunista da Folha de S.Paulo.

Segundo o médico, toda pessoa adulta e capaz tem o direito de decidir sobre seus cuidados de saúde e, em situações extremas de sofrimento considerado insuportável, determinar como e quando deseja morrer. “Nós temos que ter mecanismos sociais e legislação que permita dizer até onde você quer ir.”

Na opinião dele, a maturidade da sociedade para o tema virá com a discussão qualificada, assim como ocorreu com os transplantes de órgãos décadas atrás.

“Conseguimos estabelecer um sistema que é justo e muito bem conduzido. Isso tem que existir também para a a decisão a respeito da morte.”

Para ele, o envelhecimento acelerado da população e a alta de casos de demência tornam o debate ainda mais urgente. “Chega um ponto em que a pessoa está viva porque os órgãos funcionam, mas perdeu a condição humana. Nessas situações, quem manda é o outro.”

Em outubro do ano passado, o poeta e compositor Antonio Cicero decidiu morrer em uma clínica de suicídio assistido na Suíça, após ter recebido diagnóstico de Alzheimer e passado por uma série de internações. No mês passado, sua irmã, Marina Lima, também passou a fazer parte da Eu Decido.

Para saber mais informações sobre o movimento, acesse o site eudecido.org.br.

PERGUNTA – O que levou o sr. a fazer parte do movimento Eu Decido?
DRAUZIO VARELLA – Convivi com a morte desde muito cedo. Perdi minha mãe aos quatro anos. A gente morava num quarto. Aí não tinha como [não acompanhar], foi um longo sofrimento. Ela foi perdendo a força muscular no corpo todo, inclusive na musculatura respiratória, e morreu aos 32 anos. E eu assisti à morte no dia a dia, vendo ela se agravar e, depois, na hora fatal mesmo.

Fomos morar com a minha avó. Ela morreu quando eu tinha oito anos. Eu já sabia que a morte era uma ausência definitiva. Quando tinha sete anos de idade, também quase me afoguei num rio no interior. Cheguei a desanimar. E um primo, que tinha 12 ou 13 anos, que sabia nadar, foi lá e me pegou. Aí depois tive a febre amarela, de achar que o fígado estava acabando.

Depois, como oncologista, convivi com gente morrendo o tempo inteiro. Veio a epidemia de Aids, que foi uma devastação. E, aí, no Carandiru, convivi não só com a morte por doença, como no caso da Aids, que é a morte mais solitária que pode existir, mas também com a morte por violência. Nem sei quantos corpos eu vi no Carandiru esfaqueados, que eu tive que fazer relatórios.

Esse convívio me fez pensar profundamente sobre o sofrimento, sobre o limite da medicina e sobre a responsabilidade que temos diante da morte. Quando vi a seriedade da Eu Decido, percebi que não fazia sentido ficar de fora.

P – O que a prática médica o ensinou sobre o fim da vida?
DV – Na faculdade, aprendemos que medicina é curar. Mas isso não é verdade. Não curamos hipertensão, diabetes, muitas doenças crônicas. Mas, quando era médico jovem, quando dava de cara com a morte do paciente que eu estava tratando, me dava um sentido de frustração. Eu acho que o amadurecimento me tirou dessa visão infantilizada da morte.

O que eu comecei a entender foi a beleza de você acompanhar as pessoas, dar a elas uma morte digna. E hoje, o que eu acho, é que esse é o lado mais bonito da medicina. É aí que se expressa a arte da medicina, de usar a ciência, usar o que você sabe para adaptar esse conhecimento para aquela pessoa, naquela situação em particular. Porque pode em seguida vir outro, mesmo diagnóstico, mesmos problemas, os mesmos órgãos comprometidos. Tudo o que você fez, tudo o que você falou para o primeiro não serviu para o segundo.

Diante dessa situação, como é que você organiza a vida da família que está ali desesperada? Como é que você procura aliviar a ansiedade que vem ligada à morte? Até quando a medicina deve insistir? E qual é o momento em que ela tem que parar, não desistir, mas tem que parar em tentar salvar a vida daquela pessoa?

Chega o momento que você está fazendo um exercício teórico, porque você não vai conseguir nada de especial. Ah, mas eu quero tentar mais um tratamento. Você tem que ter a sabedoria de dizer: ‘olha, eu estou prolongando o sofrimento antes da morte’. Eu vou manter essa pessoa no aparelho aqui por mais dois ou três dias, esticando a vida? Vale a pena fazer isso? Se a pessoa vai ficar sedada, dormindo, isso está esticando o quê?

P – O sr. já presenciou pacientes pedindo para morrer?
DV – Sim, mas é raro, talvez dez pessoas em milhares que tratei. E isso sempre aconteceu em plena consciência. Não era desespero pela dor, era lucidez. Gente que dizia “já fui longe demais, não tenho mais nenhum prazer de estar vivo. Ao contrário, a vida pra mim virou um sofrimento”.

Eu tive um paciente que era meu amigo íntimo, que disse, chega. Ele tinha uma metástase na bacia. Ele dizia: “tenho dor o tempo inteiro, pra tirar a dor, me dão morfina. Morfina me deixa sonolento e eu perco o contato com as pessoas que estão em volta. Estou escravizado não por uma doença, mas por uma dor. Essa dor me limita, não posso me mexer. Tenho que tomar analgésicos fortes e, com isso, não consigo ler, não consigo ouvir música que gosto”. Isso é muito, muito raro. Quando um paciente assim toma essa decisão, precisa ser levado a sério.

P – O envelhecimento e as demências mudam esse cenário?
DV – Completamente. Hoje vivemos muito mais e com isso aumenta o risco de perder as capacidades cognitivas. Você perde a capacidade e chega um momento em que você não é mais nada. Quando você não consegue se lembrar de nada. Quando a memória desaparece, você está vivo porque os órgãos estão funcionando, mas você perdeu a condição humana. Porque nessa hora você fica na mão dos outros. Os outros vão decidir. Ah, você vai para casa, fulano vai cuidar de você, ou vamos contratar alguém para cuidar, ou você fica no hospital porque o médico decidiu que você está hospitalizado. Eu não quero passar por isso. Você não quer. Acho que ninguém quer essa situação.

P – Como deveriam ser definidos esses limites em uma eventual legislação sobre o direito à morte assistida?
DV – Nós temos que ter mecanismos sociais e legislação que te permita dizer até onde você quer ir. Tecnicamente, é possível, da mesma forma que definimos critérios para transplantes. Por exemplo, um menino sai com a moto, sofre um acidente terrível, vai para o hospital, chega lá, o cérebro não tem mais circulação. Morte cerebral é irreversível. E aí, o Estado autoriza tirar os órgãos desse menino e transplantar para outras pessoas desde que a família esteja de acordo.

Muito bem. Nós conseguimos legislar, não conseguimos?

E aí você tira o coração dele e o coração dele vai pra onde? Pra quem você escolher? Não, tem uma fila. Essa fila é organizada pela gravidade e pela ordem de entrada.

Não é bagunça: há regras técnicas e um sistema justo. Para o fim da vida, precisamos de parâmetros semelhantes. Cada pessoa deve ter o direito de dizer até onde quer ir. Para mim é claro: se eu deixar de reconhecer minha família, perder o controle do corpo e me tornar totalmente dependente, não quero que prolonguem isso.

P – Muitos religiosos se opõem à morte assistida. Como vê essa resistência?
DV – A religião não existe para aumentar o sofrimento humano, mas para aliviá-lo. Prolongar artificialmente o sofrimento de alguém que não tem mais nenhum sentido na vida não pode ser entendido como gesto cristão. É justamente o contrário.

P – A morte assistida deve caminhar junto com a ampliação dos cuidados paliativos?
DV – Claro. Uma pessoa com dor quer morrer porque não aguenta a dor, não porque a vida perdeu sentido. Se você tira a dor, muitas vezes ela aguenta mais um tempo. Mas isso precisa ser decidido enquanto há lucidez. Sem isso, a família se vê num dilema cruel: manter alguém vivo sem qualquer consciência, sem saber se há dor, com escaras, infecções, sofrimento inútil. Hoje a lei não oferece saída.

P – O sr. gostaria de ter o direito de decidir sobre a própria morte?
DV – Totalmente. E já sei exatamente quais condições eu colocaria. Tenho meu testamento vital há anos. É algo que você faz enquanto tem saúde, como um seguro: prepara para que, se algo acontecer, sua vontade seja respeitada. A vida é como uma festa, um dia acaba. Agora, você quer que a festa acabe quando? Na hora que você está bêbada, inconsciente, saindo carregada da festa na pior situação possível? Você quer sair, enquanto você ainda esteja legal, que você possa chamar um táxi pra ir pra casa. A gente tem que ter o direito de sair da vida assim

P – O que o sr. pensa de casos como o do poeta Antonio Cicero, que teve de sair do Brasil para ter acesso à morte assistida?
DV – Não tem cabimento você tirar ele do país que vive, da família, dos amigos todos, e levá-lo para um outro país que tem uma legislação mais civilizada do que a nossa. Depois, o corpo ser trazido de volta para o Brasil para ser enterrado aqui. Não tem sentido uma coisa dessa. É uma violência contra a pessoa. Ele tinha todo o direito de não querer mais viver. Estava lúcido, consciente, não queria virar um vegetal na cama.

P – O Brasil tem maturidade para aprovar uma lei sobre morte assistida?
DV – A maturidade virá com a discussão, como aconteceu com os transplantes. No começo havia medo, argumentos morais, resistências. Com informação e debate, a sociedade amadureceu e criou regras justas. O mesmo pode acontecer com a morte assistida, desde que haja lei clara para impedir abusos e proteger os vulneráveis.

RAIO-X
Antônio Drauzio Varella, 82, é médico formado pela USP (Universidade de São Paulo), especializado em oncologia. Já chefiou serviços de imunologia e de câncer e tornou-se uma das referências no tratamento da Aids e um dos maiores porta-vozes da luta contra o cigarro. Tem duas filhas, Mariana e Letícia, e é casado com a atriz Regina Braga. Já publicou 20 livros e é um dos principais comunicadores do Brasil.

*CLÁUDIA COLLUCCI/Folhapress

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