Saúde e Bem-estar

Especial: pacientes oncológicos precisam viajar pelo país para fazer tratamento

Da Redação*
Publicado em 12 de outubro de 2024 às 8:50

oncológicos

Foto: Allison Sales-Folhapress

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A assistente de produção Tâmara de Araújo, 34, deixou a cidade de Aguiarnópolis (TO) e viajou 1.730 km até Barretos (SP) em busca de tratamento para um câncer de mama. “Minha vida mudou da noite para o dia. Tive que deixar meus filhos e partir”, afirma.

Em 2021, ela identificou um nódulo no seio e procurou atendimento médico no Tocantins. “A médica contou que eu não precisava me preocupar, por ser jovem”, diz. Dois anos depois, veio o diagnóstico de câncer de mama avançado, luminal B, grau 2 —um tumor agressivo que cresce rápido.

Situações como a de Tâmara não são incomuns. Um estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), entidade privada sem fins lucrativos focada em aprimorar políticas públicas de saúde, mostra que, em 2023, a proporção de pacientes que buscam tratamento fora das suas regiões de saúde é de 15,3%. Desses deslocamentos, 35% envolvem casos de alta complexidade.

A pesquisa, que usou dados da plataforma FluxSUS, projeto do Ieps que mapeia o fluxo de pacientes no SUS, aponta que diagnósticos como malformações congênitas e neoplasias (tumores) são os que mais forçam a migração de pacientes para além dos limites de suas regiões.

A pesquisadora Frederica Padilha, autora do estudo do Ieps, explica que as regiões de saúde foram criadas para integrar serviços de um conjunto de municípios avizinhados, mas a falta de um responsável claro e o repasse de verbas diretamente aos municípios, e não à região, prejudicam a gestão.

Para Tâmara, permanecer em Aguiarnópolis, na Região de Saúde Bico do Papagaio, diminuiria as chances de sobrevivência. “Se eu estivesse no meu estado, teria que me locomover a todo momento para conseguir as coisas”, diz.

Em Barretos, Tâmara conseguiu antecipar o tratamento no Hospital de Amor. Ela e o marido, que precisou se demitir do emprego para ajudá-la, ficaram na casa de uma amiga para conseguirem se manter. “Quando aperta, minha mãe faz rifa no Tocantins para nos ajudar”, conta.

Um levantamento do Laboratório Roche, da startup de educação Educare e de instituições de assistência de alta complexidade em oncologia no Rio Grande do Sul mostra que 52% das pacientes com câncer de mama no estado abandonam o tratamento, citando a distância (70%) e a frequência de visitas ao hospital (64%) como motivos.

O Hospital de Amor recebe pacientes de todo o país, criando um “turismo de saúde” em Barretos. Atualmente, 43% dos pacientes atendidos são de outros estados, e apenas 24% são da própria região de saúde.

André Pinto, médico e cientista de dados do hospital, explica que a unidade busca evitar a desistência do tratamento oferecendo suporte como alojamento, alimentação e transporte. “O abandono acontece, muitas vezes, pela fragmentação do atendimento. Quando o paciente precisa se deslocar entre várias instituições para cada procedimento, ele pode sentir que ninguém está realmente cuidando do seu caso”, afirma.

O técnico em enfermagem José Victor, 22, viajou 2.200 km de Bom Jardim (MA), na Região de Saúde Santa Inês, até Barretos (SP) para tratar um condrossarcoma, um tipo de câncer ósseo inicial. “Após o diagnóstico, fiquei muito abalado, desenvolvi depressão, ansiedade e algumas fobias”, afirma.

No interior paulista, ele passou por uma hemipelvectomia interna, cirurgia rara no Brasil que remove parte da bacia e do osso ilíaco, na parte superior do quadril. Sem vagas nos alojamentos do hospital, ele precisou alugar uma casa, com a ajuda financeira da família, para continuar o tratamento.

Após a cirurgia, José passou dois meses em cadeira de rodas e teve dificuldades para se alimentar. “O Hospital de Amor me salvou”, relata, já de volta a Bom Jardim.

Com o aumento no deslocamento de pacientes, o Hospital de Amor expandiu suas unidades no Brasil. Pinto explica que o grande fluxo de pessoas do Norte levou à decisão de criar uma unidade em Porto Velho.

Frederica Padilha, do Ieps, ressalta que, apesar do aumento do número de deslocamentos, já se percebe uma redução na distância percorrida pelos pacientes, resultado da ampliação da rede hospitalar.

A telessaúde tem se destacado como alternativa para reduzir deslocamentos, ampliando o alcance em áreas remotas e facilitando o acesso a especialistas. Dados da Seidigi (Secretaria de Informação e Saúde Digital) mostram que, em 2023 e 2024, foram realizados 141,5 mil teleatendimentos e 1,6 milhão de telediagnósticos.

O médico Roberto Umpierre, coordenador-geral do TelessaúdeRS, afirma que a telemedicina complementa o tratamento de doenças complexas, como câncer, ao reduzir deslocamentos para consultas de rotina.

Em países como a Austrália, consultas de revisão para pacientes oncológicos são realizadas remotamente, intercaladas com visitas presenciais. “Em algumas áreas, podemos reduzir mais de 50% dos deslocamentos, o que já tem grande impacto na vida das pessoas e no meio ambiente”, diz Umpierre.

O Ministério da Saúde, por meio da Seidigi, apoia uma estratégia nacional de teleoncologia, coordenada pela USP (Universidade de São Paulo), Inca (Instituto Nacional de Câncer), Hospital de Amor e outras instituições, utilizando tecnologia para teletriagem e recepção eletrônica de exames.

Segundo a Seidigi, projetos pilotos já mostram redução significativa no tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento. A secretaria ainda avalia projetos de duas universidades para uma possível parceria em teleoncologia, visando ampliar a oferta no país.

No Hospital de Amor, a telessaúde tem média de 7.000 teleconsultas mensais, incluindo atendimentos assíncronos. “Imagine fazer um paciente que passou por cirurgia viajar mil quilômetros para uma consulta de acompanhamento”, reforça o cientista de dados do hospital.

Para Tâmara, a telessaúde oferece conforto ao evitar deslocamentos desnecessários. “Não difere de um atendimento presencial”, diz. Ela tem acompanhamento por videochamada e tira dúvidas pelo WhatsApp.

Esta reportagem foi produzida durante o 9º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha de S.Paulo, que contou com o patrocínio do Laboratório Roche e do Hospital Israelita Albert Einstein.

*GUSTAVO GONÇALVES/folhapress

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