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O divórcio entre a religião – notadamente cristã de vertente evangélica – e o bem comum ocorreu em três fases distintas, porém complementares e cumulativas. A primeira foi fruto de um longo processo por meio do qual a intensificação da lógica econômica liberal foi minando os valores cristãos e a eles se misturando, convertendo crentes a um estilo de vida individualista e consumista.
Analisando esse fenômeno no contexto da deterioração da sociedade americana, o cientista político estadunidense Mark Lilla destacou que a política progressista não conseguiu promover a solidariedade, nem o protestantismo.
Escreveu ele: ‘Apesar de este país ainda ir à igreja, o evangelho que hoje se prega, sobretudo nos círculos evangélicos, está contaminado do mesmo individualismo, do mesmo egoísmo, da mesma superficialidade que infectaram outros setores da vida americana’. A religião estava reproduzindo uma cultura burguesa hiperindividualista, mergulhada no poço sem fundo do ego e sem condições de ensinar aos jovens a pensaram nos outros e nos deveres que têm para com os outros.
O diagnóstico de Mark Lilla se agravou na segunda fase do divórcio aqui tratado. Refiro-me à incorporação desse modo de vida pseudo cristão, absorvente das lógicas capitalistas, ao discurso teológico. A chamada Teologia da Prosperidade encarregou-se de justificar a busca por elevados padrões de consumo e por sinais de riqueza entre os prósperos.
As classes médias encheram as igrejas porque agora tinham um conforto emocional e psicológico para sua vida material confortável, sobretudo em realidades sociais marcadas por desigualdades. Como dizia Max Weber: ‘Os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortunados. Além disso, necessitam saber que têm direito à sua boa sorte. Desejam ser convencidos de que a merecem e, acima de tudo, que a merecem em comparação a outros’.
No caso da Teologia da Prosperidade, interpretações capengas da bíblia passaram a ser utilizadas para associar prosperidade econômica à virtude e à fé. Nesse ambiente, a barganha com Deus é estimulada, enquanto lideres sobem de foguete na escala social e os pobres frequentadores das igrejas se sentem culpados por não possuirem o carro, a casa e os recursos dos que se dizem bem sucedidos porque cumprem os requisitos exigidos por Deus. Não dá para descrever aqui as consequências psicossociais e as confusões doutrinárias que resultam disso.
Mas chegamos à terceira fase do divórcio, mais sofisticada e sutil do que as anteriores, porém não menos irreconciliável. O início do século XXI assiste a um intenso e contínuo movimento de ataque às democracias do ocidente cristão, onde mais se avançou em termos de liberdades e direitos sociais.
Em contextos variados e por razões distintas, grupos poderosos conspiram contra a democracia. Dentre eles há tradicionalistas que condenam a secularização das sociedades e sonham com a volta de um passado mítico onde os costumes e as tradições podiam ditar as normas de comportamento social. Há também os libertarianos, adeptos de uma ideia radical de liberdade que amplia a esfera pessoal e privada, em detrimento de qualquer valor comunitário.
Já os neoliberais defendem a privatização dos bens comum e se aferram ao pressuposto de que só a espontaneidade do mercado é capaz de promover riqueza e desenvolvimento. Por óbvio, rechaçam as intervenções do Estado democrático para equalizar as diferenças. Com o fracasso dos neoliberais, surgiram os iliberais autoritários, contrários às ordens democráticas e às formulações de políticas públicas, embora atuando dentro do sistema democrático para influenciar as leis e difundir subjetividades que reforçam as dominações existentes. Para esses, a democracia e suas instituições devem ser esvaziadas, boicotadas, destruídas. Elas representam o novo comunismo, praticado pela esquerda ambientalista e igualitária.
É nesse contexto que se identifica a religião como aliada dos projetos ideológicos anteriores, compartilhando com eles o objetivo de desdemocratizar as sociedades atuais. A motivação religiosa, particularmente, funda-se na ideia de que a democracia e os partidos de esquerda promoveram a degeneração moral da sociedade. O aborto, a homoafetividade, por exemplo, são vistos como evidências de que a razão democrática fracassou.
Em face disso, em vez de evangelizar e influenciar a sociedade pela devoção, a religião agora decide se transformar num poder político ou se oferecer como instrumento dele na marcha para recristianizar a vida social e impor valores e condutas aos cidadãos. Impossível de ser concretizado, esse projeto messiânico suscita ódio a quem a ele se opõe, vistos como inimigos do bem, da moral, dos bons costumes e de Deus.
Pretende-se reintroduzir uma ética moralista, supostamente cristã, ‘na política” e despreza-se a ética ‘da política’, esta última baseada na busca pelas justiças distributiva e participativa, no debate esclarecido, no contraditório, na inclusão social, na laicidade do Estado e na preservação da coisa pública como espaço de todos e para todos.
Em resumo, a religião, transformada em projeto de poder que comunga com as forças políticas já dominantes e dissociado dos mais elementares valores cristãos, consuma sua separação definitiva do bem comum.
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