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Economia
Foto: Rafael Vieira/Folhapress
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Beatriz Nunes, 26, se descobriu vendedora há três anos, quando começou a trabalhar para a marca de biscoitos finos Biscoitê. Até então, era fotógrafa de imóveis. Mas aprendeu a identificar o perfil dos clientes, fazer sugestões pertinentes ao que procuravam, ser gentil na medida certa e insistir em uma venda no momento exato. Ela se tornou uma das melhores vendedoras da marca, que integra uma rede de 83 lojas e 600 funcionários em 14 estados e Distrito Federal.
Há poucos meses, Beatriz foi promovida a “analista de SAC” (Serviço de Atendimento ao Cliente). Seu trabalho é repassar todo o seu conhecimento à Maitê, como foi batizada a vendedora virtual da Biscoitê, que atende consumidores pelo WhatsApp. Dotada de inteligência artificial generativa, Maitê trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana, atende em um segundo ou menos e jamais deixa uma pergunta sem resposta. Beatriz acompanha interações da clientela com Maitê, corrige falhas de informação ou expressões que não condizem com o perfil da marca e a treina sobre como reagir a determinadas situações.
“É mais complicado ensinar técnicas de venda assim. Pessoalmente você tem o feeling do que o cliente quer”, diz Beatriz. O patrão, Raul Matos, presidente da Biscoitê, discorda. “Com a Maitê, podemos ter informações detalhadas de todos os clientes e atendê-los com rapidez e um nível de excelência superior”, diz ele, que já viu a lista de pedidos via WhatsApp acumular 1.500 mensagens não atendidas em períodos de pico de vendas, como o Natal.
Assim como a Biscoitê, diversas empresas no Brasil vêm usando seus melhores vendedores para treinar a IA generativa no WhatsApp a fim de aumentar suas vendas e diminuir custos. Os “vendedores virtuais” têm a capacidade de atender inúmeros clientes ao mesmo tempo, respondem em segundos, estão integrados ao estoque da companhia, trazem o histórico de compras do consumidor e não recebem comissão. Custam entre um quinto e um décimo do custo de um vendedor real.
Desde a pandemia, a maior parte das varejistas e mesmo indústrias abriram canais de vendas no WhatsApp, em conversas muitas vezes iniciadas por robôs (os “bots”), mas encaminhadas para atendentes em lojas ou centrais de vendas. Mas agora todo o processo começa a ser feito por robôs treinados para interagirem com clientes até a conclusão do processo, o que envolve apresentação de fotos, vídeos, indicação de modelos, sugestões de consumo, descrição de tamanhos, preços e condições de pagamento.
“Antes eram os bots, uma experiência mais rudimentar, em que o usuário clicava 1 ou 2 para escolher uma opção. Hoje usamos uma inteligência artificial treinada em enormes volumes de dados para entender a dúvida de um cliente e gerar um texto humano”, diz Conrado Leister, vice-presidente e diretor geral no Brasil da Meta, dona do WhatsApp. A plataforma tem no país um dos seus três maiores mercados globais. Segundo pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, realizada em fevereiro, o WhatsApp está em 99% dos smartphones do Brasil e 97% dos usuários usam o aplicativo todo dia ou quase todo dia.
Na divisão WhatsApp Business, voltada para empresas, existem três tipos de produtos: utilidades (o consumidor pode fazer pagamentos ou pedir segunda via da fatura, por exemplo), autenticação (o cliente recebe uma senha ou confirma se é ele tentando acessar um serviço) e campanhas de marketing, com soluções de IA generativa desenvolvidas por parceiros da Meta para uso no WhatsApp. A plataforma não ganha sobre as vendas das empresas, mas na contratação de um dos produtos.
“As pessoas não querem mais ligar para um call center. Recentemente, fizemos uma pesquisa que apontou que 84% dos brasileiros querem falar com a empresa como eles falam com a família e os amigos, via WhatsApp”, diz Leister, ressaltando que o Brasil é líder mundial em envio de mensagens de voz pelo aplicativo, o que destaca a importância que o brasileiro dá para as conversas.
Na opinião do consultor em varejo Alberto Serrentino, da Varese Retail, o uso de IA generativa no WhatsApp vai quebrar paradigmas no setor. “Algumas teses apontam que o conversational commerce [comércio conversacional] vai matar a barra de buscas: o consumidor não vai precisar mais de site. Vai abrir o WhatsApp ou o aplicativo da empresa e começar a compra por voz. Isso já acontece na Amazon e no Walmart nos EUA, por exemplo”, diz Serrentino, destacando que o Magazine Luiza caminha nesse sentido.
Frederico Trajano, presidente do Magalu, confirma. “A próxima fronteira da revolução digital é o comércio por inteligência artificial, em especial por meio de uma experiência conversacional. No Magazine Luiza, todo o processo de compra vai acontecer por meio de uma conversa com a Lu”, diz ele, referindo-se à garota-propaganda e influencer digital do Magazine Luiza, inspirada em Luiza Trajano Donato, uma vendedora que fundou a rede em 1957.
Segundo o executivo, a novidade já está sendo testada por “milhares de pessoas” e deve ser apresentada “em breve”. “Será 100% IA, sem interação humana e multimodal”, afirma. Dessa forma, um cliente pode abrir o canal do Magalu no WhatsApp e perguntar, por voz, qual a melhor TV para uma sala que mede 3 m x 4 m, por exemplo. A Lu vai apresentar todas as sugestões e a compra já pode ser fechada em seguida.
Questionado se o novo canal vai substituir as atuais vendas feitas no WhatsApp por vendedores de lojas do Magalu, Trajano não dá detalhes. “Acho que as duas formas continuarão existindo.”
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Maurício Bastos, principal executivo de tecnologia do grupo Azzas 2154 (da fusão entre Arezzo e Soma), diz que o WhatsApp deve funcionar como um canal completo de vendas ao consumidor final até o fim do ano, dentro da vertical de calçados e bolsas do grupo. Mas o Azzas, que conta com mais de 2.000 lojas, analisa o uso de IA generativa para todas as suas 28 marcas, entre elas, Hering, Schutz, Reserva e Farm.
“Fizemos um projeto-piloto com cinco lojas da Arezzo e identificamos que 15% das vendas foram feitas no período em que a loja estava fechada”, afirma Bastos, para quem a rapidez no atendimento ao cliente é crucial nesse tipo de canal. “Se um vendedor demora mais de três minutos para responder a mensagem, o potencial de conversão cai 70%”.
Com a rede de outlets de moda Off Premium, o Azzas 2154 fez seu grande teste com IA generativa. “Trouxemos vendedoras reais para passar o tom de voz da marca e criamos a Jaque, a nossa consultora virtual, que é muito próxima de uma vendedora real”, diz Maria Fernanda Schardong, coordenadora de comércio eletrônico da Off Premium. “Começamos acompanhando 40 conversas com consumidores por dia. Hoje são mais de 1.000”. O índice de resgate de carrinhos abandonados (quando o consumidor desiste da compra) passou de 0,5% para 13%.
A Off Premium, assim como outras marcas do Azzas 2154, é uma das clientes da Omnichat, parceira tecnológica da Meta que desenvolve soluções de IA conversacional para vendas. “Ninguém mais quer saber de telemarketing, o WhatsApp é muito menos invasivo”, diz Maurício Trezub, presidente da Omnichat. Dos cerca de 500 clientes atendidos pela empresa, 80 estão usando “agentes autônomos” (vendedor virtual) alimentados por IA generativa no WhatsApp, como Biscoitê, Mobly, Live!, Cassol e Grupo Veste.
“As empresas usam o agente autônomo 24 horas por dia ou ativam a solução nos momentos em que a loja está fechada”, diz Trezub. “Mas é uma solução que já permite trocar a equipe comercial por IA. O agente autônomo não esquece o que aprende e não pede demissão.”
Bastos, do Azzas, acredita em um “processo gradual” em que o comércio conversacional ganhará espaço nas vendas totais. Hoje, o digital representa 25% das vendas do grupo, considerando sites, aplicativos e WhatsApp. “Com a IA, estamos atravessando talvez a revolução mais rápida da história da humanidade, mais do que a internet”, diz ele, que acredita que o papel do vendedor tradicional não vai desaparecer. “Assim como não sumiram as lojas físicas com o avanço do digital.”
O Sindicato dos Comerciários de São Paulo, porém, tem consciência de que a categoria já vem perdendo espaço para a inteligência artificial. A tecnologia que abriu espaço para os caixas de autoatendimento, alguns já equipados com IA, é um exemplo desse caminho sem volta, diz Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo e da UGT (União Geral dos Trabalhadores).
“Eram 50 mil operadores de caixas na cidade de São Paulo há quatro anos. Hoje são 35 mil”, diz. “Ninguém vai brigar com a tecnologia. Mas nossa obrigação é minimizar as perdas para os trabalhadores.” Com supermercadistas e varejistas de moda, o sindicato discute limites escalonados para a substituição do pessoal por self-checkouts, em 20% do total de caixas. “Vamos propor medidas semelhantes para a venda digital”. Hoje o Brasil tem cerca de 10 milhões de vendedores, 500 mil na capital paulista.
A ABT (Associação Brasileira de Telesserviços), que reúne empresas de telemarketing, SAC e cobrança, lembra que o setor já foi o maior empregador do país. Há cerca de 12 anos, mantém um patamar estável, em torno de 1,4 milhão de trabalhadores. “O atendimento ao cliente jamais vai ser substituído por completo por robôs, mesmo com o avanço da IA”, diz Gustavo Faria, vice-presidente da ABT. “A IA deixa o atendente bem mais preparado. As pessoas sempre querem o canal humano para questões complexas.”
*DANIELE MADUREIRA/folhapress
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