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Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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O Brasil iniciou a semana com uma notícia um tanto triste de que o Pe. Júlio Lancellotti (foto) não irá mais transmitir as suas celebrações diretamente da Igreja de são Miguel Arcanjo onde atua por mais de 40 anos.
O propósito deste artigo não é atuar com críticas ácidas às autoridades eclesiásticas ou causar qualquer embaraço de cunho político-partidário, mas sim, trazer à baila a figura do padre, profeta da caridade. Neste sentido, fica expresso que Pe. Júlio Lancellotti caminha pelas ruas como quem recolhe pedaços do mundo.
Não o faz movido por vaidade, protagonismo ou desejo de reconhecimento público, mas por uma convicção profundamente evangélica: a fé cristã não se sustenta em discursos bem elaborados, mas em gestos concretos.
Assim, suas ações vão se tornando um testemunho incômodo e necessário de que o Evangelho não foi feito para permanecer confinado em templos, documentos ou discursos piedosos, mas para ser vivido de forma exigente no chão duro e frio da história, nas ruas e embaixo de pontes e viadutos das grandes cidades e, especialmente onde a vida humana é mais ferida.
Em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, Pe. Júlio tornou-se o rosto visível de uma caridade que não cabe em púlpitos, nem em palanques, tampouco em gabinetes ornados e perfumados em que muitas vezes, o abandono é disfarçado por discursos oficiais e propagandas institucionais vazias, de modo que, sua presença constante junto à população em situação de rua revela aquilo que muitos preferem não ver: a pobreza não é estatística, tem rosto, nome, história e dor. E por isso mesmo, incomoda.
Tomando como base o Evangelho de Mateus, encontra-se no versículo (Mt 25,40) a chave hermenêutica para compreender sua missão: “O que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fazeis” Pe. Júlio não apenas cita esse versículo; ele o transforma em critério de vida, pois, quando entrega uma marmita a quem tem fome, não entrega apenas comida, entrega dignidade.
E quando distribui cobertores nas madrugadas frias, não apenas aquece corpos, mas afirma que aquelas vidas importam. Quando toca mãos sujas e calejadas, abraça quem ninguém abraça, ele devolve humanidade a quem foi sistematicamente desumanizado.
Por sua vez, essa prática concreta do Evangelho encontra profundo respaldo na Doutrina Social da Igreja. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, recorda que “cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus para a libertação e a promoção dos pobres” (FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 187)., insistindo que a fé autêntica jamais pode ser indiferente diante da exclusão social.
Neste horizonte, desde a Rerum Novarum até os ensinamentos mais recentes do Papa Francisco, a Igreja insiste e persiste que a dignidade da pessoa humana é o princípio fundamental de toda organização social, pois, nenhuma política pública, nenhum projeto econômico, nenhuma estrutura de poder pode se considerar legítima se coloca em segundo plano a vida dos mais vulneráveis. Pe. Júlio, ao colocar os pobres no centro de sua ação pastoral, não faz outra coisa senão viver aquilo que a Igreja ensina.
Sendo assim, outro princípio essencial da Doutrina Social é a opção preferencial pelos pobres. O Papa Francisco é categórico ao afirmar que “enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, não se resolverão os problemas do mundo” (FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 202). Aqui fica evidente que se trata de uma escolha evangélica, não ideológica.
Neste sentido, preferir os pobres não significa excluir os ricos ou os demais, mas reconhecer que aqueles que mais sofrem têm prioridade no coração de Deus e, portanto, na missão da Igreja. Pe. Júlio encarna essa opção de maneira radical e cotidiana. Com isso observa-se que sua ação pastoral não é esporádica, nem assistencialista; é presença constante, compromisso perseverante, compaixão que não dorme.
Seguindo essa máxima evangélica “compaixão”, fica claro que, não se limita ao gesto imediato da ajuda. Ela também denuncia estruturas injustas. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco adverte que “algumas partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício de uma seleção que favorece um setor humano digno de viver sem limites” (FRANCISCO, Fratelli Tutti, n. 18)., e com isso denuncia uma cultura que descarta os mais frágeis. Ela também denuncia estruturas injustas.
Por isso, que ao proteger pessoas em situação de rua, enfrentar remoções violentas, se posicionar publicamente contra políticas que criminalizam a pobreza, Pe. Júlio dá testemunho do princípio do bem comum, outro pilar da Doutrina Social da Igreja. E que fique claro que o bem comum não se confunde com o interesse da maioria nem com a lógica da eficiência econômica; mas exige que a sociedade seja organizada de tal maneira que todos, especialmente os mais frágeis, possam viver com dignidade.
Não surpreende, portanto, que sua atuação gere reações adversas. Pe. Júlio já enfrentou governadores, prefeitos, vereadores e setores da sociedade que preferem uma cidade “limpa nos moldes eugenista” de pobres, ainda que moralmente suja de injustiça e exclusão. Sua presença sem dúvidas desinstala porque revela o fracasso de políticas públicas notadamente incapazes de responder à complexidade da exclusão social. Por sua vez, também incomoda porque expõe a tentação recorrente de tratar a pobreza como problema de polícia, e não como questão humana, social e ética.
Como se observa, a Doutrina Social da Igreja também insiste no princípio da solidariedade, entendido não como um discurso ou um mero sentimento vazio, mas como virtude social. Na Carta Encíclica Fratelli Tutti, Francisco ensina que “a solidariedade é pensar e agir em termos de comunidade” (FRANCISCO, Fratelli Tutti, n. 116)., numa convocação ao mundo para romper com a lógica individualista que transforma o outro em ameaça ou peso.
Assim, no sentir do Papa Francisco, solidariedade é reconhecer que somos responsáveis uns pelos outros. Pe. Júlio vive essa solidariedade de forma concreta, assumindo como sua a dor do outro. Ele não espera que o mundo melhore para então agir; ele melhora o mundo onde está, com os meios que tem, mesmo sabendo que seus gestos não resolvem estruturalmente todos os problemas. Ainda assim, ele age, porque o amor cristão não espera condições ideais.
Contudo, vemos hoje o Brasil dividido: uns com admiração sincera, outros com incômodo e até hostilidade. Esse fenômeno confirma o alerta do Papa Francisco quando afirma que “incomoda que se fale de ética, incomoda que se fale de solidariedade mundial, incomoda que se fale de distribuição dos bens” (FRANCISCO, Evangelii Gaudium, n. 203)., porque estes temas com certeza desnudam privilégios e injustiças estruturais. Pois, é justamente esse incômodo que revela a força profética de seu testemunho. Como os profetas bíblicos, Pe. Júlio não se limita a consolar; ele provoca, questiona, denuncia. Sua vida lembra à sociedade e à própria Igreja que não há verdadeira fé sem compromisso com os pobres, nem espiritualidade autêntica que ignore o clamor dos que sofrem.
Portanto, nestes tempos marcados por discursos vazios, polarizações políticas estéreis e uma religiosidade, por vezes, desconectada da realidade, Pe. Júlio Lancellotti recorda que o cristianismo nasce do encontro com o ferido à beira do caminho. Sua vida é um sermão silencioso, porém eloquente, que ecoa pelas ruas e desafia consciências. Ele nos obriga a perguntar, com honestidade: que tipo de sociedade estamos construindo? E que tipo de fé professamos quando passamos ao largo dos “mais pequeninos”?
Por fim, Pe. Júlio não dorme porque a dor do outro não dorme. E enquanto houver fome, frio, abandono e indiferença, sua compaixão continuará sendo sinal de contradição — e, ao mesmo tempo, sinal luminoso do Evangelho vivido na história. E assim, vemos em sua teimosia em amar, o Brasil encontra não apenas um padre, mas um espelho incômodo e necessário de si mesmo, isto é, “a compaixão que não dorme”.
*Padre João Afonso da Silva é Presbítero da Diocese de Campina Grande – PB. Formado em Filosofia e Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharel em Direito pela Unifacisa e atualmente é coordenador de Pastoral da Diocese de Campina Grande.
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