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Uma declaração conjunta de diferentes organizações pediu ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em uma das sessões de outubro de 2024, o fim do uso discriminatório de reconhecimento facial, a garantia de saúde e educação nos presídios e providências para o desencarceramento.
Quem deu o recado foi Cristiano Silva de Oliveira, 47, em um vídeo publicado durante a sessão. Ele representava a associação Eu Sou Eu: A Ferrugem, uma das autoras do comunicado, e falava por experiência própria.
Preso em 2010, o historiador e professor se chama de sobrevivente do sistema prisional brasileiro, do qual se despediu definitivamente em 2021, quando foi indultado e teve a pena extinta. Para deixar o regime fechado, no entanto, Cristiano precisou escrever à mão o próprio pedido de habeas corpus para iniciar a progressão de regime.
Nascido em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde vive atualmente, Cristiano foi condenado a 14 anos e oito meses de prisão por furto qualificado e formação de quadrilha. Na extinta Polinter, estrutura da Polícia Civil, ele passou pouco mais de um ano.
“Já cheguei com ensino médio, um diferencial, então ajudava os outros, a maioria presos por tráfico, a escreverem cartas para a família. E lia muito, a maioria era coisa de autoajuda e a Bíblia.”
Já em 2011, ele começou o périplo por Bangu, como é conhecido o Complexo Penitenciário de Gericinó, na zona oeste carioca. Foi sob os dias abafados e com pouca água potável na cela que ele começou a sentir a velocidade diferente da defesa dentro do sistema criminal.
“Na condenação é muito mais rápido, é o bater de um martelo, uma canetada e as coisas caminham”, afirma. “A defesa é um entrave. Primeiro porque não há defensores públicos suficientes, tem as barreiras colocadas pelas administrações penitenciárias. E também os altos preços da defesa com advogado.” A defesa, ele lembra, era organizada por ordem alfabética e distribuída entre dois ou três defensores, quando havia.
Para Cristiano, enquanto o tempo passava e os retornos da defesa sobre progressão ou habeas corpus demoravam, crescia uma sensação de angústia com o tempo passado. “Você começa a pensar o que vai ficar fazendo ali, porque já venceu uma conversão, já venceu uma tornozeleira, já venceu uma condicional e ainda estou aqui.”
Nas conversas com outros presos, Cristiano viu que, em meio ao ócio, eles estudavam os próprios processos e discutiam detalhes que acabavam de fora dos pedidos por benefícios. “Uma defesa de Defensoria Pública não é um estudo aprofundado, e a gente entende pelo déficit de funcionários que poderiam fazer um estudo de caso mais aprofundado. Então é algo mais genérico, muitas coisas que poderiam ser atenuantes ou minimizar a pena vão passando.”
Aproximando-se de um grupo, ele começou a aprender como poderia fazer a própria defesa. “E aí nesse processo, tinha ali um vade mecum, bem surrado, as folhas soltando, a capa deteriorando e não era tão atualizado, mas começamos a ler questões de defesa, do Código de Processo Penal e da Lei de Execuções Penais.”
Ajudado pelo grupo e ajudando outros colegas, Cristiano escreveu, à mão em uma folha de papel, o pedido de habeas corpus —um dos únicos recursos na Justiça que não precisa ser feito por um advogado— entre o fim de 2011 e o início de 2012.
“Numa visita da minha companheira, conversamos e eu pedi a ela esse favor. Ela foi até a Vara de Execuções Penais, no centro do Rio, e protocolou o pedido. Depois de 15 ou 20 dias eu recebi a resposta.”
A resposta era a transferência do regime fechado para o semiaberto, no qual ele poderia sair para trabalhar e retornar a Bangu para dormir. “A galera ficou ‘caramba’, a gente sabia de outras histórias de quem havia conseguido, mas na minha galeria eu fui o vanguardista.”
A gente se apresenta: eu sou fruto da saidinha. Sou fruto do benefício de ir pra casa e de poder estudar
historiador e professor
Cristiano se lembra do choque, também, de outras instituições, como pessoas na Defensoria, que custaram a crer que ele havia impetrado o próprio pedido. Já na Vara de Execuções Penais, o feito soou como um mérito.
Durante o trabalho no centro do Rio, proporcionado pela Fundação Santa Cabrini, vinculada à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), Cristiano também passou a frequentar bibliotecas. “Desde a Polinter, com aqueles 50 graus, a comida estragada, eu tinha essa ideia de exercer a dignidade batendo muito na cabeça.”
A leitura sobre direitos humanos e psicologia reabriu os caminhos para a educação. Em 2015, Cristiano conseguiu progredir para a condicional. Continuando os estudos, ele prestou o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e conseguiu uma bolsa integral para estudar história. Ele também conheceu nessa época o Instituto Nova Rota, do qual ele agora é um parceiro, e conseguiu uma bolsa e mentoria para se manter na faculdade. “Foi tudo acontecendo até eu me formar em história no final de 2022.”
É por isso, ele diz, que estudar ajuda a romper um ciclo pelo qual ele passou. “É uma engrenagem que se retroalimenta de reincidência da criminalidade, que acontece para manter a cadeia. É emancipatório adquirir conhecimento.”
Entre outros projetos, atualmente Cristiano dá aulas de história no Educação Que Liberta, projeto sediado no Rio e com aulas online para quem está longe da escola e quer voltar a estudar. Para quem está no sistema prisional ou é egresso, ele também faz a ponte para tentar apoio financeiro para estudos com o Nova Rota.
“A gente se apresenta: eu sou fruto da saidinha. Sou fruto do benefício de ir pra casa e de poder estudar. Às vezes vamos ter que usar o projeto que esse estado de superencarceramento tem que é a grande piada de ressocializar, como uma ferramenta. A Seap tem o lema ‘ressocializar para o futuro conquistar’. E precisou acontecer tudo isso para que o futuro seja conquistado.”
*LUCAS LACERDA/Folhapress
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