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Novo ´mercado´: Bets chegam às igrejas evangélicas e preocupam pastores

Da Redação*
Publicado em 11 de novembro de 2024 às 19:11

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Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

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“A prática dos jogos não é novidade”, lembra a Igreja Universal em texto publicado em seu site no mês passado. É só abrir a Bíblia.

Está lá, no Novo Testamento: soldados romanos queriam uma espécie de souvenir após a crucificação de Cristo. Decidiram então sortear com qual deles ficaria a túnica.

Pode até não ser novidade, mas não é por acaso que a Universal, denominação evangélica das mais caudalosas do Brasil, dá tanta atenção a esse tema agora. Com raras exceções, as igrejas condenam jogos de azar.

O que pastores começam a se dar conta é que nem por isso o fiel deixa de ser presa fácil para o jogo do tigrinho e afins.

Evangélicos aderem mais à jogatina online e se endividam mais por causa dela, segundo pesquisa realizada entre 12 e 14 de outubro pelo PoderData, com 2.500 pessoas em 181 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Dentro desse bloco cristão, 29% disseram já ter feito uma aposta virtual. Na média geral, são 24%.

Entre católicos, o índice cai para 22%. O grau de endividamento também é maior entre evangélicos: 21%, ante 16% da amostra total e 12% no catolicismo.

Relatos de crentes envolvidos em apostas esportivas, as bets, crescem e se multiplicam nos templos.

“Temos o caso de um menino que tinha R$ 90 e foi jantar com a namorada. A conta deu mais do que isso, ele foi ao banheiro e jogou os R$ 90. Perdeu tudo”, diz o apóstolo Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo.

O rapaz “ficou completamente desesperado e recorreu aos pais para irem socorrê-lo”, afirma.

Outra fiel da igreja, a vendedora de ar-condicionado Tania Martins Vieira, 48, não chegou a ver uma saída para um vício que a fez perder, pelas suas contas, meio milhão de reais.

Para pagar os credores, seu apartamento hoje está em leilão. Perdeu ainda “carro, todos os cartões de crédito, dignidade, caráter”. Por pouco não perdeu também a vida. “Tentei suicídio.”

Começou nos jogos por “curiosidade”, quando foi com a filha conferir um bingo aberto na porta da casa delas. Mais tarde, somaria a modalidade digital ao vício.

Em tratamento no Hospital das Clínicas, Tania credita sua recuperação sobretudo à fé. “Todo o tempo em que estive internada, muitos oraram por mim. Meu namorado, que também foi do jogo, conheceu Jesus e me ajudou a voltar para os caminhos do Senhor.”

Refere-se ao técnico em prótese dentária William Mendes, 43. Ele chegou a entregar seu laboratório para quitar dívidas. As perdas acumuladas em casas de jogo clandestinas ficam em “papo de milhão”, conta.

Hernandes diz que a Renascer tem intensificado os cuidados com o tema, que aumentou com a digitalização das apostas.

“Acreditamos ser esse o papel da igreja, como forma de criar anticorpos contra esse febre que prejudica tantas pessoas e famílias.”

O pastor Filipe Scarcella já lidou com a compulsão por bets na Igreja Batista Soul Livre. Não o espanta que o hábito contagie evangélicos. “As igrejas adeptas da Teologia da Prosperidade creem que Deus seja um atalho para prosperar. Que controla todas as coisas e honra quem é fiel com riquezas”, diz.

“Essa esperança de riquezas fáceis é o que motiva o crescimento das bets. Chame de sorte ou de Deus, o princípio é o mesmo.”

O mote “profetizou, jogou, sacou”, popular em empresas de aposta, tem um apelo especial ao evangélico, “acostumado que é a ouvir o verbo profetizar no sentido de ‘manifestar positivamente’ que algo aconteça no mundo espiritual”, repara Marília de Camargo Cesar, autora de “Feridos em Nome de Deus” e de um artigo na Folha de S.Paulo sobre o assunto.

“É uma bela jogada de marketing. Nem todos captam a mensagem dessa maneira, claro, mas os crentes se identificam.”

O bispo Renato Cardoso, tido como provável sucessor de Edir Macedo na Universal, abordou o problema no programa “Inteligência e Fé”, exibido em mídias ligadas à igreja. Sua explicação para a dependência enveredou pela via teológica. Culpou o “espírito do vício e o espírito do demônio da riqueza, chamado Mamom”, pela epidemia de jogadores adictos.

Querer ser rico, diz Cardoso, não é obra do diabo. A não ser quando vira cobiça e afasta a pessoa de Deus.

“Antes de as pessoas caírem no golpe da criptomoeda, das bets e do tigrinho, elas caíram em Mamom.”

O pastor Silas Malafaia é outro que faz alertas “ao povo sobre a desgraça do jogo”. Se lhe chega um fiel envolvido com a prática, sugere: “Vai orar a Deus, ler a Bíblia, pede para Jesus te libertar dessa praga”.

Sua visão, como a do bispo Cardoso, transborda para o terreno espiritual. “Não é apenas um vício que a Organização Mundial de Saúde classifica como algo terrível. A Bíblia diz que o diabo veio roubar, matar e destruir, então tudo aquilo que leva o homem e sua família à destruição, para nós, tem o diabo por trás.”

A publicitária Samanta, 27, que prefere omitir o sobrenome “porque meu noivo não sabe da minha situação”, diz que orou, orou demais, para não se deixar cair em tentação. Não bastou.

Ela teve que tirar a filha da creche particular e pedir empréstimo no banco após começar apostando R$ 50 “no tigrinho”, o que em cinco meses descambou para um rombo de R$ 50 mil na conta bancária. Também deixou de dar o dízimo. Procurou ajuda na sua igreja e ouviu a recomendação: ora que passa.

O impulso para jogar, com esperanças de reaver o dinheiro perdido, falou mais alto. Samanta entrou então num grupo para adictos como ela, sediado numa igreja. “Se eu ficasse só de conversinha com Deus, só de oração, acho que ainda estaria emburacada. Então Deus me deu uma ferramenta para eu sair dessa ao lado dos meus irmãos e irmãs.”

O CR (Celebrando a Recuperação) é um desses programas terapêuticos de orientação cristã e inspiração nos 12 passos do Alcoólicos Anônimos. De origem americana, está em cerca de 90 países.

O segundo com mais núcleos, depois do Canadá, é o Brasil, diz Roseni Welmerink, diretora nacional do projeto.

A Igreja Batista de Água Branca, na Barra Funda (região central de São Paulo), acolhe encontros do grupo. São em torno de 350 pessoas à procura de apoio toda semana.

Muitos que chegam ali, segundo Welmerink, “não têm noção de que vêm por causa das bets”. Vêm primeiro “por causa do sintoma”, afirma.

“Por estarem quebrados financeiramente, com relacionamentos desfeitos, crises de ansiedade, depressão. Só que eles não entendem que isso é resultado das bets.”

Samanta diz que essa ficha já caiu para ela. Há três meses e cinco dias sem jogar, está confiante de que não volta mais para aquela vida. Brinca: “Quer apostar?”.

*ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER/folharess

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