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Agnello Amorim

Agnello Amorim

Membro da Academia de Letras de Campina Grande e procurador de justiça aposentado.

O pé de moleque e o São João do moço Amorim

Por Agnello Amorim
Publicado em 1 de junho de 2024 às 15:57

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Minha mãe:

Hoje é 24 de junho, dia de São João. As fogueiras que ontem crepitaram são cinzas quentes. O espipocar das bombas e dos foguetes são tiros esparsos, nesta manhã fria. Provavelmente a bruma da antemanhã ainda embala a paisagem com o seu hálito úmido.

A alma triste aquece-se nas lembranças ainda quentes do passado. Não digo dos tempos da infância, quando Moço Amorim organizava as nossas fogueiras dos dias de São João e São Pedro, adquirindo fogos de artifícios para que, no fugaz espetáculo pirotécnico, desfrutássemos a alegria dos minutos passageiros que marcam indelevelmente o espírito do homem. Refiro-me ao São João do ano passado, o último São João de Moço Amorim.

A reunião foi aqui em casa. O velho pai, alquebrado pelo desfiar de uma vida longa e sofrida, tinha ainda em seus olhos tristes, lampejos de alegria. Talvez em sua mente as fogueiras antigas estivessem acesas. Fogueiras dos primórdios da sua vida. Vida tecida no sofrimento da caatinga de Barra de Santana. Vida continuada no sofrimento do homem do interior, de uma região desgraçada e pobre. Vida de altos e baixos.

Os netos estavam em seu redor, alegres e saltitantes. A euforia da criançada reanimava seu coração cansado. Você mamãe, parecia a namorada antiga, solícita, lhe servindo canjica, pamonha e aquele pé de moleque fantástico, feito de mandioca, mel de rapadura, leite de coco, castanha, cravo da índia, erva-doce, manteiga e ovos. Ah, o pé de moleque, assado no forno, envolto em palha de bananeira, incitando a gula, alimentando as lembranças do noivado.

Mamãe, quando eu como teu pé de moleque eu sinto nele o gosto da minha infância, em tua companhia – e na de Moringa, Tota e da boa negra Benedita. O pé de moleque está associado às nossas existências como se o grude da goma extraída da mandioca nos ligasse a todos, numa só massa.

Papai, mamãe, naquele São João, me parece que teve uma visão premonitória do fim próximo. Os olhos cinzentos e tristes faiscavam de vez em quando. Notava-se em seus gestos, em seu apetite, em sua visita à fogueira que mandei erguer, em seu interesse pelos balões que subiam, uma fome de vida — aquele alento que vai empurrando o homem para frente.

Papai, mamãe, parecia que estava recebendo a visita derradeira da alegria. Apesar dos esticados anos de vida — e das naturais e inevitáveis mossas do desgaste do tempo — papai naquele dia demonstrava uma razoável agilidade. Imagino que ele sabia ser o seu último São João. A pamonha dele, Socorro fez sem açúcar, somente com sal. Era uma homenagem culinária que ele prestava a D. Sinhazinha, sua mãe, de quem nunca esqueceu os dengues e os afagos.

Papai, mamãe, foi ver os balões subirem. Na ilusão do passeio efêmero pelos céus, dos rústicos artefatos de papel, ascendiam também suas lembranças. Pareceu-me também, mamãe, que naqueles momentos de contentamento, papai estabelecia paralelos entre a trajetória dos balões e a caminhada do homem. Um subir e um descer constantes, ao sopro de ventos incontroláveis, para, finalmente, sobrarem apenas cinzas. E a lembrança da luz que brilhou e se apagou, por conta das chamas que morreram, para nada.

Mamãe, papai gostava daquele dia. Não propriamente pelo seu aspecto tradicional. Não propriamente pelo seu lado litúrgico. Ele via naquele dia, mamãe, ou mais precisamente, naquela noite, a antevéspera do momento maior da vida. E isso o deixava alegre e nostálgico. Uma mistura engraçada, incoerente, troços dos desmantelos existenciais.

Mamãe, os balões que fiz subirem eram instrumentos alados de papel e cera. Papai contemplou os seus passes de dança celestial. O bailado inútil de caminhada de curto tempo. Os balões querendo, por instantes fugidios, imitar as estrelas, acendendo emoções, ascendendo sem rumo, por veredas de um céu sem fronteiras, estavam a incendiar os sonhos perdidos de uma humanidade inconsequente.

Mamãe, você está de luto. Você está vestida de preto, porque uma viúva de um caririzeiro não poderia ter outra atitude. O seu preto é o negro do amor que já foi verde. É —e será— a homenagem ao esposo querido. A homenagem ao pai que nunca mediu sacrifícios para o sustento do lar, mesmo nos momentos mais dramáticos da longa convivência em comum.

Mamãe, ontem eu fiz subir um balão com o nome MOÇO AMORIM. Você me disse que não queria ver mais nada, no dia de ontem, a não ser o seu mundo interior. Suas recordações são todas suas, nesta data. A fogueira do amor, da amizade, construídas com as lenhas de um convívio de 47 anos ininterruptos, não haverão de se apagar. Os balões, artefatos alados de papel e cera, levarão, nos instantes derradeiros de suas mensagens amargas, a natureza dos nossos sentimentos perenes. Não quero exumar coisas passadas. Ressuscitar aquilo que lhe pode magoar, pelo caráter profundo afetivo.

Mamãe, no dia de hoje, 24 de junho de 1980, a senhora deve se sentar à mesa, sozinha, com suas recordações. Mande Cecília, a nossa querida auxiliar doméstica, trazer a travessa de pé de moleque. Ponha dois pratos na mesa — aqueles pratos de fabricação inglesa, que foram do seu enxoval, presentes do noivo —, corte duas fatias, uma para a senhora, mamãe, e outra para papai, que vai estar ali em espírito. Coma o seu, com gosto. Com o gosto que ele sentia quando comia o teu fenomenal pé de moleque. Deixe o pedaço dele, intacto, como um monumento à sua memória. Será o gosto da recordação. Coma, apetitosamente, sem constrangimento.

Hoje, d. Albertina, minha mãe, seria o dia da comemoração do teu casamento com Moço Amorim, há logos, sofridos e bons 47 anos.

(Diário da Borborema – 24/06/1980)

(extraído do livro Espiando a Vida – 1ª edição – 1988)

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