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Jurani Clementino

Jurani Clementino

Jornalista, professor universitário, escritor e membro da Academia de Letras de Campina Grande.

O guardião da memória

Por Jurani Clementino
Publicado em 23 de julho de 2024 às 11:00

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Quando cheguei à casa daquele senhor baixinho, meio envergado pra frente, de pele enegrecida em parte pelo sol, de boné surrado sobre a cabeça, conversando agoniado como quem tem pressa e com uma mania estranha de chamar todo mundo de “colega”, eu quase nada sabia sobre ele. Apenas que era o pai de um amigo meu que tinha voltado da favela da Rocinha, Zona Sul do Rio de Janeiro, a passeio e estava comemorando o aniversário com a família. Para a celebração mandou a mãe preparar uma panela de carne de bode e cozinhar umas buchadas para misturar com uma infinidade de comida que estava posta numa mesa farta com arroz, macarrão, salada de verdura, feijão etc.

O pai de meu amigo não estava em casa quando chegamos. Tinha ido a uma bodega dessas de interior entupida de refrigerante, cereais, banana madura, cerveja e muita cachaça. E era isso que ele, o senhor envergado para frente tinha ido procurar lá. Uma dose de pinga. “É, é bom né colega”? Pedia a minha confirmação a sua pergunta titubeando, porque além de todas essas características citadas anteriormente ele também era meio gago. Falava rápido pisoteando as palavras e atropelando as letras. Repetia várias vezes a mesma frase certamente porque tinha consciência de que podíamos não ter compreendido a informação de primeira. Depois do almoço ficamos conversando numa espécie de garagem/armazém que ele construiu ao lado de casa numa comunidade rural chamada Riacho Fundo, a poucos quilômetros da sede urbana do município de Esperança, agreste paraibano.

Foi durante essas conversas, pós-almoço, que fui descobrindo que se tratava de uma pessoa bastante ligada à história da comunidade. “Sou presidente da Associação tem 20 anos. Vez por outra chega alguém aqui pedindo documento para aposentadoria e eu dou. Antigamente o povo do Sindicado vinha aqui pra confirmar. Hoje eles já sabem que eu sou de confiança e o que eu mando eles aceitam”. Esse senhor de 72 anos, casado e pai de uma penca de filhos, entre uma conversa e outra me disse que adora ouvir rádio. Escutar as notícias. “É bom demais, colega. A gente aprende. Olha, colega, quando eles falam uma palavra que não sei o significado, aí eu anoto e depois pesquiso. É! Desse jeito. Chega aqui pra eu te mostrar meu caderninho”.

Nessa hora ele me leva até um anexo da garagem, um quarto pequeno com uma mesinha e uma infinidade de quinquilharia por cima. Muitos cadernos amontoados dividindo espaço com rádios portáteis antigos, gravadores, cédulas de dinheiro vencido (Cruzado, cruzeiro, cruzeiros novos). Pegou um dos cadernos, abriu e tirou um papel com a seguinte pergunta: o que é pragmático? “Pronto isso aqui eu escrevi porque não sabia o significado”. Perguntei se ele tinha descoberto o mistério por trás daquela palavra esquisita. Ele respondeu que sim. “Pragmático, colega, é uma pessoa direta, correta, objetiva, sem enrolação. Uma pessoa realista”. Sorri espantado com aquela maneira curiosa de descobrir o mundo e suas significações sociais. Daí ele foi passando as páginas do caderno e me mostrando. “Veja colega eu anoto tudo. Aqui tem o que aconteceu, o dia o mês e o ano”. E me mostrou vários exemplos. Datas de nascimentos, falecimentos, casamentos, registro de animais que procriaram, de pessoas que foram embora, outras tantas que chegaram, as desavenças entre vizinhos, crimes e ameaças, construção de cercas, visitas importantes… tudo isso se misturava a palavras para ele desconhecidas que eram anotadas para depois serem desvendadas.

“Hoje tá muito fácil colega. Quando não sei o significado de uma palavra eu tomo nota, depois vou no Google e ele diz na hora”. Sorri confirmando que era assim mesmo. Mas entre uma anotação e outra percebi um nome estranho. Não consegui decifrar, aí perguntei o que significava aquilo. Ele então baixou um pouco o tom da voz, me puxou para um canto do quarto e disse: “isso aqui colega é um negócio que um amigo me indicou. Um remédio, sabe! Às vezes você quer brincar com a mulher e já não tem mais, sabe! Já não é como antes. Não tem aquela disposição. E é ruim colega quando isso acontece. Aí ele me indicou esse remédio. São uns comprimidos. Não é Viagra. Porque aquele Viagra faz mal. Esse é outro. Eu já tomei umas três vezes. E tem uma coisa colega é sucesso. É bom demais. Olha você toma meia hora, uma hora antes -, eu digo você, mas sei que tu é novo não precisa, mas colega é só sucesso. Olha, colega, isso é segredo viu! porque ninguém aqui sabe disso não. Nem a muié. Ela às vezes diz ‘que danado tu tem hoje hem?’ Deixa eu ir ali no carro pegar o nome direito”.

Daí ele foi, com aquele jeito avexadinho dele, e voltou trazendo um pedaço da embalagem do remédio recortada. “Quando chego na farmácia eu mostro isso e o atendente vai lá e me traz. É bem baratinho. Acho que custa doze reais”. Disse a ele que tudo bem, que não contaria a ninguém sobre nossa conversa e a existência do remédio milagroso. Daí voltamos para o salão da garagem onde estavam as demais pessoas e pouco tempo depois ele entrou no quarto novamente e saiu com um livro surrado, com a capa de couro solta e as páginas se desmanchando de velhas, mofadas, algumas rasgadas e outras tanto faltando. Ele então me estendeu a mão com o velho livro em decomposição e disse: “Olha coleguinha conhece esse livro?”. Me entregou e quando abri as primeiras páginas estava lá: LUNARIO PERPÉTUO. Tomei um susto. E perguntei. Onde o senhor achou esse livro? “É meu colega”. Respondeu. “Isso era do pai de meu pai. Meu avô. Ele tinha um cuidado danado com esse livro. Ave-maria. Aí tem de tudo”. Confirmei que sim. Que era uma espécie de oráculo, de almanaque raríssimo que era vendido por valores exorbitantes e que antigamente orientava desde produtores rurais a cuidar da terra e dos animais, até rezadeiras, cartomantes, médicos práticos, etc.

Ele então me disse que tem uma grande mágoa porque a irmã do pai dele, rasgou todas as folhas que tratavam dos signos. Fui olhar e confirmei. Só havia as orientações sobre o signo de sagitário. Os demais haviam sumido do livro.

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