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Jornalista, professor universitário, escritor e membro da Academia de Letras de Campina Grande.
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Esses dias, meu irmão, João, que faz questão que eu jamais esqueça as minhas origens de menino da roça, me convocou para ferrar um gado. Isso mesmo, marcar na pele do bicho a identidade de seu dono.
– Jura, tem uns bichos na rocha pra ferrar e eu preciso da sua ajuda.
Minha mãe, logo o advertiu:
– Ora, Jurani passa tão pouco tempo aqui e só pelas roças!
Como se dissesse: deixa ele descansar. Mas meu irmão não faz isso por mal, como se desejasse danadamente que eu sofresse. Muito pelo contrário, ele faz porque no fundo sabe sagazmente que aquele meu eu permanece vivo. E ainda sou, agora sabendo, o que sem saber fui. E não nego a minha existência por vaidades banais. Você só é aquilo que é e sabe que é. Então não me custa ser eu mesmo. Isso não me exclui necessariamente os outros eus. Pessoas vão me convidar para eventos chiques: formaturas, receber títulos e honrarias ou apenas para tomar cerveja no fim de tarde, e também irei com meus tantos outros eus. Então, fomos.
E fomos destinados a fazer essa maldade com os animais: ferrar no próprio couro do bicho a identidade de seu dono. Chegamos lá e tratamos de procurar o gado na mata. Dezenas. Assustados como se fossem o que eles mesmo são: bichos do mato. Que tem medo de gente. Que sai correndo pelo pasto à medida em que pessoas estranhas se aproximam. Só meu irmão não era estranho para eles. O gado já havia se acostumado com a sua presença diária por ali. Mas eu metia medo naquele bando de animais. Quando finalmente conseguimos reunir a boiada, – que saiu em apressada fila indiana pelos caminhos rasgados na mata -, eis que meu irmão, com seu olhar curioso de vaqueiro que entende o sentimento dos bichos, viu, debaixo de uma moita de mofumbo, bem próximo a um açude quase seco, uma vaca abandonada e entristecida. O que fazia aquele animal solitário por ali?
Quando nos aproximamos, percebemos que algo estranho acontecia com ela. Meu irmão me falou que a vaca, que era de um tio nosso, estava prenha, prestes a dar à luz a um bezerro. Como ele prefere dizer: a vaca estava amojada. Foi aí que avistamos, como que saindo de seu corpo, um filhote. As duas patas do bezerro brotavam pela traseira do animal. Um parto interrompido. A força da mãe não conseguiu expelir para fora a própria cria. Talvez a posição do bezerro no ventre da mãe tenha dificultado aquele nascimento. Era perto do Natal. Duas semanas separavam aquela cena, – de uma vaca triste, sozinha e abandonada à margem de um lago -, da maior história que essa humanidade já conheceu: O nascimento do Salvador. A vaca estava visivelmente entristecida e abalada. Talvez achasse que fosse morrer também. Morrer de parto às vésperas do Natal. Como se com a perda do filho ela também estivesse condenada a deixar de existir. Justo no Natal, justo no fim de ano. Justamente ali naquela mata. Longe de tudo e de todos. Na sua completa solidão. Mas que destino cruel.
Havia um amigo com a gente. Nos aproximamos e sem açoitar, tangemos o animal, que se movimentou com dificuldade. Precisávamos leva-lo até o curral, junto com o outro gado que ia ser ferrado, para saber o que poderíamos fazer para salvar aquela pobre alma inocente. O bezerro era caso perdido. Deveria estar morto há horas, ou até dias. Cambaleando, a vaca se movimentou, e seguiu os demais animais. Sem pressa. Até que finalmente alcançou o curral da roça. Agora deveríamos fazer vir ao mundo aquele que morreu sem conhecê-lo. Extraí à fórceps do ventre daquele ser, o seu filho natimorto.
Então, amarramos a cabeça do animal, passamos a corda por suas pernas e o fizemos cair ao chão. Apeada e jogada sobre o esterco do curral talvez fosse melhor fazermos algo. Com uma segunda corda prendemos os pés do bezerro entalado e começamos a puxar para fora da barriga da mãe. Mas o bezerro não se movia. Ia dar muito trabalho aquele parto. E ninguém ali tinha tanta experiência. Era algo improvisado. Aos poucos o animalzinho quase recém-nascido começou a sair de dentro da vaca. Estava apodrecendo. Sua mãe, coitadinha, urrava certamente de dor, ou de alívio, vai saber. O bezerro não estava numa posição favorável a um parto natural. Ao invés de vir ao mundo de frente, com as mãos e a cabeça cumprimentando a luz do dia, não, ele estava vindo ao mundo como se não quisesse. De costas.
Antes de o mundo aceitá-lo ele já havia negado a sua própria existência nesse lugar. Não se chega ao mundo de costas.
E aos poucos o corpo tenso da vaca foi se desprendendo dos restos mortais de seu filho. Os pés, o rabo, a traseira, o corpo duro e finalmente as mãos e a cabeça.
Animal completamente formado, pronto para viver. A vaca respirou aliviada. Um jato misturado com a líquido aminoácido, sangue e mijo, brotou quase espontaneamente do pobre animal esgotado em suas forças. Meu irmão então arrastou o bezerro morto para fora do curral e seguimos ferrando o gado.
A vaca se demorou um pouco ali deitada, confusa ficou refletindo sobre aquilo que acontecera e com dificuldade e sem pressa, levantou-se. Equilibrou-se sobre as patas. Observou ao redor. Não viu mais o filho perdido. Andou um pouco, saiu do curral e se acomodou debaixo dos pés de umbuzeiro. Remoendo suas dores e o pouco pasto que deve ter comido nos últimos dias. Um parto forçado de um bezerro que nem mesmo à força quis fazer parte desse mundo. Era quase Natal. Era quase vida. Era quase esperança. Mas era também a morte espreitando aquela vaca, que por sorte, escapou.
Jurani Clementino – Campina Grande
20 de dezembro de 2025
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