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Jornalista, Pós-Graduada em Comunicação Educacional, Gerente de Negócios das marcas Natura e Avon.
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Por ser uma das mais novas de uma família de 10 filhos e a menorzinha de todos, os irmãos sempre cuidavam de mim com apreço, defendendo e zelando pela minha integridade.
O que eles não acreditavam, embora deixasse claro, era que eu não precisava de proteção. Sempre fui forte e determinada e aquilo que me desafiava se tornava foco.
Aqui começando a escrever sobre reminiscências, a caixa de Pandora se abre e lembro de algumas situações engraçadas que chegam com cor e até sabor.
Por gostar de ler, abominava números. Matérias de cálculo eram torturantes. Detestava até os professores, e eis que um dia mudei o mindset e decidi fazer imersão na matemática, e como consequência figurei entre os bons alunos, o que me habilitou a trabalhar com números até hoje.
Outra boa lembrança de superação: por volta dos 7 anos, me desafiava a entrar na casa de minha mãe que era antiga, comprida com vãos grandes, nas noites de faltas de energia, com o único objetivo de testar coragem.
O medo estava muito presente e ainda assim eu entrava com aquela velha e conhecida sensação de que, a qualquer momento, uma alma penada sopraria no meu “cangote” ou que veria fantasmas fotoluminescentes voadores. Ainda assim eu ia, em alguns momentos fechando os olhos para não enxergar o que a imaginação queria tornar real e me fazer disparar de volta à calçada onde os vizinhos conversavam com o único lampião da casa.
Buscava no âmago do meu ser, a coragem e apego ao grito de libertação desse mesmo medo. E seguia!
Na volta, o ímpeto era refrear o passo para não correr.
Chegar à calçada era libertador e me parabenizava silenciosamente, também acalentando esperanças que alguém o fizesse, mas como ninguém sabia sobre a guerra que acabara de travar e vencer, não recebia medalhas verbais.
Esta terceira lembrança é a mais emblemática:
Nas férias, ia para a casa dos meus avós e tinha uma tia maravilhosa por quem tínhamos uma predileção especial, Madrinha Nova, aquela tia preferida que junto com Tetê (ambas in memoriam), outra tia do rol de predileção, que sempre nos acolhia com amor e colo quentinho. Eram extensões das nossas mães.
Nestas ocasiões, a festa estava garantida nos shows noturnos improvisados, nos balanços debaixo das árvores, nos passeios em busca das fruteiras da época, algumas nominadas.
Havia um pé de umbu de muitos anos, plantado pelos antepassados, que chamávamos de umbuzeiro de Pai Gonçalo. Seus frutos eram de um doce azedo incrível, diferente de todos. Estes também tinham um pelinho, por isso dizíamos que eram os umbus cabeludos.
Em uma destas férias, decidi ficar na casa de outra tia que tinha muitos filhos e morava na beira da estrada. Por ser a primeira vez que ficava na sua casa, estranhei.
Quando o sol estava se pondo, o céu dando sinais de que a noite se anunciava, uma estrada convidativa, bateu um desespero para ir embora. A distância para a cidade de Teixeira era de aproximadamente 4 léguas.
A estrada era de barro, daquele vermelho e muitas pedras. Pensei: preciso ir embora antes que escureça de vez. Ato contínuo, contei para os primos, pelo menos 5 deles com idade próxima a minha, entre 7 e 11 anos. Fui à cozinha onde uma das primas mais velhas cozinhava e perguntei se estava pronto. Não estava. Pedi um pouco do rubacão em um pires, e estava tão cru que rangia nos dentes. Não me fiz de rogada pois precisava sair com alguma coisa no estômago.
Quando cheguei no terreiro (um quintal pequeno de terra batida, localizado no exterior da casa, onde as galinhas vivem soltas e onde a gente inventava as melhores brincadeiras), contei que iria pra casa e ninguém acreditou.
Meti o pé na estrada deserta que parecia não ter fim e saí correndo a princípio, mas logo cansei porque não é fácil correr sobre pedras levantando poeira. Na curva mais adiante, olhei para trás e vi a pequena multidão de primos e primas esperando a humilhação do retorno. Me revesti do resto de dignidade que o medo queria usurpar e movida por este sentimento dobrei a curva sem olhar para trás.
Depois de muito caminhar, correr, cansar, caminhar, querer voltar, me arrepender, me repreender por me arrepender, a escuridão tomando conta da estrada, vi algumas pessoas saindo de uma trilha do mato e meu pensamento foi: opa! agora terei companhia.
Acelerei o passo num trote leve, pois já estava exausta de andar sozinha há tanto tempo, conseguindo me aproximar quando avistávamos um local com a alcunha de Pedra do Galo.
Quando me viram invadindo aquela procissão silenciosa de quem trabalhou no sol a pino ao longo do dia, uma mulher com uma “trouxa de feijão na cabeça” (vagens amarradas em um lençol), perguntou: de onde a menina vem? Respondi que estava vindo da casa de uma tia. Ato contínuo, a óbvia pergunta: e com quem você anda?
Quando contei minha aventura, juro que jamais esquecerei sua expressão de surpresa e a frase que até hoje ecoa nos meus ouvidos: “Minha fia, você tem coragem de mamar numa onça”.
Nunca me achei tão poderosa e no meu imaginário, me via com as tetas da onça na boca sugando seu precioso leite e esta, obedientemente parada sabendo quem mandava no pedaço!
Quando cheguei em Teixeira, tocava a tradicional Ave Maria na difusora e minha mãe estava fechando a loja de calçados para ir rezar na igreja Santa Maria Madalena por nós e por uma filha que perdeu aos 11 anos, dor da qual nunca se recuperou totalmente.
Minha mãe, Dona Helena, uma mulher de fibra rara que nos deixou muito cedo, se assustou ao ver minha chegada, coberta de poeira, exausta e sozinha.
Obviamente que contei minha aventura com riqueza de detalhes, achando que tinha realizado a maior proeza, porém ignorando os perigos, porque havia muitos e onças só amamentam seus filhotes.
É claro que minha mãe não achou a menor graça e esta foi a última vez que passei férias no sítio da família.
Mas, a aventura que vivi e a frase despretensiosa de “coragem de mamar numa onça” que ouvi de uma pessoa tão simples e de forma tão singela, tiveram um efeito poderoso em mim, tanto que até nos dias de hoje quando me vejo em situações onde o improvável se desenha, os desafios se agigantam, me lembro que sou forte e tenho coragem de mamar em onça.
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