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Agnello Amorim

Agnello Amorim

Membro da Academia de Letras de Campina Grande e procurador de justiça aposentado.

Biliu de Campina sem acréscimos

Por Agnello Amorim
Publicado em 14 de julho de 2024 às 21:10

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“Nunca se dirá tudo a respeito de Rosil Cavalcanti. Ele foi muito maior do que sua gente e sua terra imaginam”.

Assim falou, em 1968, o jornalista, escritor e professor Stênio Lopes, campinense nascido no Ceará, no rescaldo da morte súbita, aos 53 anos, do autor de Tropeiros da Borborema, hino informal de Campina Grande, cuja discografia registra 82 títulos, entre tantos, sucessos como Aquarela Nordestina, Cabo Tenório, Forró de Zé Lagoa e o antológico Meu Cariri.

Decerto, igual juízo há de se aplicar a Biliu de Campina — Severino Xavier de Souza —, quando cessar o esbarro pungente do seu passamento, e a sua imagem alegórica, talhada pela agonia, dissipar-se.

Então há de se traçar um quadro vero do seu imenso contributo à música popular brasileira, como intérprete, compositor e diligente pesquisador do forró.

A irreverência na ponta da língua, o talento visceral — virtude familiar — saltando do bisaco cheio disso, o saber sabido em ritmos musicais, as suas letras com o bafo da boca do povo dos carrascos, seus trajes típicos, chapéu de couro enterrado na cabeça entupida de sonhos, a perseverança na luta sem trégua, peixeira na mão, tudo e mais alguma coisa em defesa da riqueza da cultura popular do Nordeste e da sua identidade de território sem cercas, em que se nasce pernambucano parido no Piaui.

E Biliu sabia que sem brigar pelo que é genuinamente nosso não haverá salvação. E que ninguém deve se render às falcatruas da modernidade, que é velha, pois quem cozinha com bafo é cuscuz, como não costumo dizer, repito o que os outros já andam dizendo, faz tempo, está em Gênesis e outros lançamentos editoriais recentes ou não.

E Biliu sabia, também, que é inegociável o que foi gerado no porão das entre coxas de anos de invenção e prosopopeia cabocla, melodias escrituradas no deboche lúdico da safadeza criativa dos cantadores e violeiros, dos chãos representativos e sagrados dos municípios de São José do Egyto e de Monteiro, e nos milagres da inteligência e inspiração de Lourival Batista e Severino Lourenço da Silva Pinto.

E Biliu sabia, por fim, que a sede desse irredentismo do Sertão dos Cariris Velhos era Campina Grande do Maior São João do Mundo — e escrevendo-se certo num um torto aprumado — mais grande, mais bom e o melhor sem segundo.

E todos nos sabemos, que o anúncio dessa verdade, a mais verdadeira, foi do profeta e deus de gibão e espora , Ariano Suassuna, relho na mão espantando do nosso cascalho os falsários, os inimigos da cultura orgânica do povo.

E não se haverá de esquecer Biliu de Campina, o artista de assombro verbal, que em sua trajetória de sulcos e chapadas construiu um discurso original, prenhe de humor e originalidade, fazendo com a palavra iluminada o que o outro monstro campinense, Genival Lacerda, fez por intermédio da munganga estilizada e pela expressão vocal única.

Tocador de pandeiro, — instrumento nacional inventado num país chamado Neolítico, como assim disse um especialista graduado — Biliu de Campina foi do samba, baião, pagode, coco ao maracatu, acompanhando tudo que se mexesse como aglomerado sonoro usado pra dançar ou cantar, manejando com mãos bailarinas a ferramenta de Jackson, seu ídolo, seu santo, seu rei.

Cultivando o exagero com moderação, afirmava ele que Niccolo Paganini, compositor, guitarrista e violinista italiano, dotado de uma técnica inimitável, afinava seu Stradivarius, no padrão Sol-Ré-La-Mi, utilizando a afinação do pandeiro como modelo.

Paganini era um revolucionário na arte de tocar. Em razão disso foi preso pela polícia da Republica de Genova como subversivo melódico. E no avesso, admirado por Schubert, Schumann e Chopin.

Do outro lado da porteira, entre Rosil Cavalcanti — autor da música Tropeiros da Borborema, fundida numa peça só com os versos de Raymundo Asfora — e Biliu de Campina, estabeleceu-se, em épocas diferentes, traços de semelhança, pois um e outro foram artistas do palco, compositores e versados nos ritmos da música nordestina, ambos cativos das origens, que o sucesso nacional não alforriou.

E havia um outro atributo compartilhado, nos fazendo acreditar que lá pras bandas do lá de cima, havia alguém unindo esses gênios enfezados e insubmissos, por uma marca ou ferro, não esteticamente atraentes: ambos eram escouceadores sacramentados, ou seja, em nordestês vigente, popeiros de primeira categoria.

Quantos violonistas sob a batuta de Rosil, nascido em 1915, quase tiveram seus instrumentos enfiados em suas cabeças, transformados em colar para uso próprio, por confundirem um si bemol com um la, apenas um semitom de diferença?

Quando perguntaram a Biliu, nascido em 1949, num programa de audiência nacional da TV Jornal, sediada em Recife, o porquê do aposto Campina ao apelido, veio dele a reação meiga, sutil e cortês:

— Biliu de Campina é porque eu vim doutro planeta, de patinete, trazendo sua mãe no bagageiro, sem calcinha”.

O gênio arisco partiu, por força das circunstâncias irremediáveis que o envolveram, fazendo-o furar a fila. Muito ainda tinha a oferecer, uma imensidão. Privou a todos da ampliação dos seus estudos sobre nossos pastos melódicos, principalmente quanto o uso tocado ou dançado do injuriado forró.

E o que haverá de se dizer pelo cessar definitivo da sua produção de letras e músicas enfeitiçadas?

A forrobodologia de Biliu de Campina, com apoio em Câmara Cascudo, é recomendada pela competência do mestre sem par e pela sua especialização no assunto, ambientados na vivência constante nos meios artísticos da região nordestina e doutras paragens.

Onde Biliu ia, chamava atenção e agradava. Resoluto, desassombrado e inconveniente — às vezes e quase sempre —, reincidente em genialidade artística, combinava criatividade e originalidade, herança de sua essência atávica.

Ah, o pai, tenor Chico Xavier, alfaiate de habilidades excepcionais, cortador de tecidos finos sem uso de fita métrica ou régua, rachando com um grave, no cantar do Hino Nacional, um pote de barro feito com matéria prima do sítio Louzeiro — argila primeiríssima da periferia de Campina Grande, argamassa de seu primeiro templo católico, hoje Catedral Metropolitana.

E o primogênito, advogado e jurista, Valério, auditor do Tribunal de Contas da Paraíba, que não aceitava convites para conferências remuneradas até em universidades do exterior, se coincidentes com dia e hora dos ensaios do seu conjunto musical, onde era talentoso pandeirista, sem remuneração — ele e o conjunto.

E você, Biliu, ainda sem o encosto Campina, como mecânico, na rua João Moura, fazendo dupla com Heleno Porquim, na oficina de Zé Neto, inventando uma chave de fenda de uso geral, número feito na hora, no esmeril (não havia conjunto do instrumento) atendendo à necessidade momentânea da aplicação.

O irmão de menor expressão, Marcos, mecânico na cidade de João Pessoa, criou um motor automotivo que funcionava com água de torneira. Um dia, secou o tanque hidráulico do seu veículo, que mesmo decepcionado com a negligência do dono, voltou, apesar de vazio, da cidade de Cabedelo para o ponto de origem no Distrito dos Mecânicos, na capital paraibana.

Lanca, o outro mano, servidor público e fabricante de pandeiro — requisitados no Brasil inteiro —, preferia dedicar-se ao fabrico de triângulo ( tengo-lengo), instrumento musical feito de metal:

— O preço é baixo, mas tem a vantagem da freguesia ser reduzida. E melhor ainda: não vivem chateando a gente com novos pedidos!

Ele, Lanca, que era genial e igualmente abusado, inventou uma concha de feijão que identificava o tipo da leguminosa, data do plantio e colheita, na hora da sua retirada da panela.

Chiquinho, um dos irmãos mais velhos de Biliu, pintor afamado de retratos, aos 13 anos de pindaíba crescente negou-se a vender a um exportador de algodão de Campina Grande, em 1948, um quadro, por ele pintado, do botafoguense Heleno de Freitas (atacante ímpar, prestígio mundial), pela quantia correspondente a cinco salário mínimos de Getúlio Vargas (um salário sustentava uma família de desocupados, antes da sociedade de consumo):

— Não vendo. Seu Zé de Brito é torcedor do Vasco da Gama!

E porque não falar do tio, Zuza Alfaiate, criador da frase conceito “furar a fila”, significando o morrer antes da hora marcada, sem vantagem.

O competente e inspirado compositor e sanfoneiro, Amazan, afirmou que Biliu de Campina estava tocando pandeiro no céu. Sei não. Ele não apreciava muito as alturas. Quantos e quantos magníficos da música popular brasileira insistiram pra ele se estabelecer no Sul — Meca profana dos sons e dos ritmos —, como foi assim com Belchior, conforme registrado pelo biógrafo de Biliu de Campina, o polímato Noaldo Ribeiro.

Na sua dialética unilateral, Biliu, diante do convite de Belchior, respondeu à secretária do afamado cantor, compositor, fazendeiro, empresário, escritor, editor, filósofo e outras muitas ocupações menores:

— Aceito conversar com Belchior sobre o convite, pessoalmente. Aqui no Café Aurora, em Campina Grande, dia de sábado. E sem carregos por perto!

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