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Jurani Clementino

Jurani Clementino

Jornalista, professor universitário, escritor e membro da Academia de Letras de Campina Grande.

As carretas e o transformador gigante: o que dizem sobre nós?

Por Jurani Clementino
Publicado em 23 de março de 2025 às 11:40

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Há cerca de uma semana, as populações de dois estados nordestinos – Paraíba e Pernambuco -, vêm acompanhando, com um misto de ansiedade e deslumbre, o transporte de um equipamento pelas BR’s 101 e 230. Na verdade, trata-se de um transformador gigante que veio da China, chegou ao Porto de Suape a bordo de um cargueiro, pesa 600 toneladas e tem mais de onze metros de comprimento. Para conduzi-lo até um Parque Eólico localizado no município de Nova Palmeira, estão sendo utilizados três caminhões e dois semirreboques, formando uma estrutura que chega a cento e treze metros de comprimento.

Bom, o fato é que essa logística logo se transformou numa festa itinerante. Bastou o comboio deixar o vizinho estado de Pernambuco em direção à Paraíba que os pernambucanos começaram a venerar o translado do equipamento. E o ôba, ôba só foi ganhando força à medida em que, a cada novo dia, estacionava em um ponto diferente da BR 101. As redes sociais deram o comando. De repente, as pessoas começaram a compartilhar fotos e vídeos desse transporte do transformador. Nesse material era possível ver churrasco regado à bebida, carros de som, fogos de artifício, discursos de políticos, festa…, uma multidão passou a acompanhar o trabalho coordenado pela PRF que continuou na Paraíba pela BR 230. Cada quilometro percorrido pelas carretas e seu transformador gerava novos conteúdos para as redes que impulsionaram o evento. Até uma “letra” de música foi criada. Rádios, emissoras de TV, portais de notícias e o chamdo jornalismo “sério” entrou na onda. Desde o primeiro momento fiquei me perguntando: o que está acontecendo com essa sociedade? Por que esse burburinho todo em torno disso? O que há de tão especial nesse trabalho? Por que as pessoas estão dedicando tanto tempo, tanto espaço, tanta energia, para uma coisa que não deveria, ao meu ver, receber essa atenção toda. Não estou dizendo que não deveria ser noticiado. Estou questionando a maneira como o fato está sendo tratado.

Razões para olharmos àquela logística com cautela haviam de sobre: primeiro porque se trata de um trabalho delicado. Segundo porque atrapalha o trânsito e por isso ocorre depois das 22h. Terceiro porque é uma ação que pode eventualmente provocar acidente. Quarto porque está mobilizando praticamente todas as equipes da Polícia Rodoviária Federal… enfim eu acho que a atenção merecida deveria ser outra. Mas, depois de muito refletir, cheguei a uma conclusão um tanto óbvia: a de que a gente vive no mundo das máquinas. Então a gente adora as máquinas. A gente depende das máquinas. Tudo que a gente faz está ligado a essa coisa criada pelo homem.

Por exemplo: se eventualmente eu peço um texto para meus alunos, alguns deles não se dão ao trabalho de pensar sobre esse fazer, sobre elaborar um texto, eles simplesmente vão lá na máquina, colocam um comando e recebem o texto pronto.  Se eu peço para que eles leiam alguma coisa, muitos vão na máquina, acionam o comando e têm um resumo, os trechos mais importantes. Isso também ocorre com a dona de casa que não sabe cozinhar (a máquina ensina); com o homem que não sabe andar pela cidade (a máquina orienta); com o poeta que não sabe rimar (a máquina resolve); com o engenheiro que não sabe calcular (a máquina calcula), ou seja, estabelecemos uma relação de dependência extrema com ela.

Então, o que nós estamos acompanhando não é somente o transporte de um transformador percorrendo duas BR’s importantes e toda essa logística que envolve esse transporte. Nós estamos adorando a nós mesmos, venerando a nossa criação e exibindo, ainda que inconscientemente, a nossa total dependência assustadora da máquina. A representação dessa máquina nada mais é do que a nossa representação mais grotesca de uma reverência, de um elogio à banalidade, ao ridículo, ao grotesco, a esse mundo que está cada vez mais perdido de si. Literalmente alheio ao mundo das ideias e completamente submisso ao mundo das invenções tecnológicas. São elas quem dão o comando, são elas quem nos levam para onde querem, são elas o nosso ópio.

Ontem eu estava num bar e vi um senhor dizendo que segunda ou, no mais tardar, terça-feira, as carretas com o transformador passarão por Campina Grande e vão ficar estacionados na Alça Sudoeste. Esse cidadão que, aparentemente tinha mais de quarenta anos, disse ao amigo que estava com ele, que vai pegar umas cervejas, colocar num cooler e vai lá celebrar a passagem das carretas. Eu já vi isso várias vezes nas redes sociais e nas emissoras de TV e acho que vivemos um processo irreversível de subordinação do homem a máquina. Mesmo que o transporte desse equipamento esteja obstruindo o tráfego, atrapalhando o trânsito, tumultuando nossas vidas… persiste esse deslumbre, essa fascinação, esse encantamento.  Talvez porque o homem entenda que a máquina seja sua criação, fruto de sua evolução humana. É como se o criador estivesse lambendo a sua própria cria e se perguntando: como fui capaz de fazer tal proeza. A criatura sentindo-se pequena diante a sua criação. O que ele tem que entender é que a máquina engoliu o próprio homem. Já não existe mais criador e criatura. Existem a máquina e uma irrestrita dependência dela por todos nós. Do homem comum aos mais competente dos intelectuais.

Já houve um tempo em que as pessoas deixavam as suas casas e saíam às ruas para “ver a banda passar cantando coisas de amor”. No tempo em que se celebrava a cultura, no tempo que se pensava no amor ao próximo, no tempo em que se comemorava a vida de maneira intensa e como ela deve ser. Mesmo naquele tempo o final era triste como disse o poeta:

Mas para o meu desencanto

O que era doce acabou

Tudo tomou seu lugar

Depois que a banda passou

E cada qual no seu canto

E cada canto uma dor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor

Detalhe nem entrei no mérito das questões ambientais trazidas por esses parques eólicos. E corre ainda o risco de todo esse trabalho servir para alguma empresa multinacional que esteja explorando a “energia limpa” por aqui. No mais é isso. Vamos ver a banda, ops, a carreta passar.

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