Meu ´presente´ de Natal
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Artesão de palavras e de sentimentos
Este colunista tem as suas assumidas predileções literárias. E uma delas é o escritor Frei Betto, autor de dezenas de livros e de centenas de maravilhosas crônicas.
Para embalar o desejo de Feliz Natal a todos os internautas, seguem retalhos de uma crônica natalina do admirado cronista.
“Dom e não dor”
“Neste Natal, soterrarei de perdões o meu mal querer e de afagos essa sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Serei dom e não dor.
Lições em prática
“Porei em prática sábias lições de vida: pão que se guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o contrário do medo não é a coragem, é a fé.
Paradoxo
“Segredarei aos peregrinos três aforismos de meu bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre pretérito ou futuro.
Cultivo
“Cultivarei cada fio de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto.
´Meu irmão´
“Tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas da cidade para acolher em festa os que trazem boas-novas.
Arrancar as ´algemas´
“Violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do tempo que me escraviza ao ritmo implacável de minutos e segundos.
“Feliz”
“Serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo meus pecados e, crucificado numa roda-gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens.
“Mãos calosas”
“Nomearei para o governo da cidade um cavaleiro que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao clamor dos desvalidos.
“Faxina”
“Suspenderei todas as flexões, exceto a que aprendo na academia dos místicos. Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da faxina atirar pela janela da compaixão iras, invejas e amarguras.
Acolhimento
“De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas carências.
Silêncio
“Proclamarei o silêncio como ato de profunda subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.
Esplendor
“Curarei da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça o esplendor da semelhança divina.
“Um só corpo”
“Arrancarei do chão de ferro os pés congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o peso das próprias asas. Ao alcançarem o topo do mundo, verão que todos somos um só corpo e um só espírito.
“Hóstia viva”
“Farei do meu corpo hóstia viva; do meu sangue, vinho de alegria.
Ressurreição
“Na concretude da fé, anunciarei aos quatro ventos a certeza de ressurreição da carne e de todo o Universo redimido. Então, o que é terno nos limites da vida tornar-se-á eterno quando a morte transmutar-nos.
Criança dentro de mim
“Neste Natal, cultivarei a criança que me habita, brincarei de escorregador no arco-íris, cortarei a lua em fatias de queijo e passearei de roda-gigante no sol, pois a vida é breve e os apegos fastidiosos.
“O amor supera”
“Serei desengaiolador de pássaros, pois creio no milagre da ressurreição, e desdenharei os sinais de morte convencido de que o amor supera a dor e a vida extrapola o conceito”.
“O que quer dizer Natal para a nossa banal sociedade, sorvendo uísque e seu tédio, em feriado vazio?” (Dom Luís Fernandes, in memoriam, mas sempre atual)…
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