“Conferência da Saudade”
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Tempo de comutação
É começo de ano. No ano findo, uma página virada de lembranças que se avolumaram por mais tempo. Ou despedidas ocorridas ao longo do ano que se foi e em (se é que é cabível a expressão) processo de cicatrização.
Foi com essa moldura que decidi compartilhar com os leitores uma linda crônica do notável escritor e filósofo Gabriel Charlita, igualmente apresentador de programa na Rede Cultura.
Chama-se ´A Conferência da Saudade´. É o que segue. Feliz 2025!
Aurora
“O dia demorou a dizer. O relógio já explicava o amanhecer e o amanhecer não amanhecia. Tampouco em mim.
“Nada via”
“A janela, feita para o acordar com o sol, estava aberta e eu nada via. Vi, em mim, tantos sentimentos. Foi como uma conferência da saudade.
“Nunca morreram”
“Há fotografias espalhadas nos cantos que dão acesso à janela. Os meus mortos nunca morreram em mim. Ouço a voz do meu pai. A voz que dizia honradas atitudes. A voz que amainava os calores provocados por discordâncias entre nós.
“A voz do meu pai”
“Éramos em muitos filhos e mais os primos. E a casa grande tinha grandes barulhos. A voz do meu pai silenciava. A voz do meu pai dizia vida naquela vida comum. Olho sua foto e ouço ´filho´ e o complemento. Ouvir ´filho´ acalma a demorada chegada do sol.
“Sou colheita”
“Meu avô, pai de minha mãe, foi um ensinador de resistências. Sofreu sofrimentos com a altivez dos que plantavam a terra e os valores corretos. Sou colheita. Não negligencio os sinais que me orientam a não desviar da rota, mesmo quando os atalhos parecem fazer chegar antes.
“Por quê?”
“Chegar antes por quê? Chegar antes onde? Já corri a corrida insana de provar que poderia vencer. Já estacionei o dia, explicando a mim mesmo que vencer é desocupar a mente e os sentimentos da necessidade de vencer.
“Há o filme em mim”
“A saudade traz o sorriso da minha mãe. Outra foto. Dentro e fora. Ela e meu pai. E os olhares. E o beijo próximo de ser beijado. Se fosse filme, eu poderia ver o beijo. Há o filme em mim. O filme da infância. A mesa da família onde as refeições eram feitas. As conversas sobre as grandes virtudes.
“Ofício de cuidar”
“Minha avó gostava de nos fazer comer além do necessário. Sorria a satisfação de nos oferecer alimentos. Ofereceu a vida toda para exercer o ofício do cuidar. Era mais alta do que meu avô.
Contadora de histórias
“Os que trabalhavam em casa eram da casa. Havia a Rosa que, antes do anoitecer, nos contava histórias. Era inventadora de causos que causavam medo. Minha mãe ralhava com ela. ´Depois eles não dormem´.
“Não temia a noite”
“Às vezes, não dormíamos mesmo. Eu achava Rosa de uma valentia indescritível. Ela não temia a noite. E saía pelo quintal afora sem se preocupar com os seres que acordam quando dormimos.
Rotina
“O café nos cheirava antes. A mesa tinha os pães feitos em casa, os bolos, as frutas, algumas do pomar. E, depois, a escola. E, depois, a volta para casa. Havia as escadas e no alto delas o abraço de mãe. Prolongado. Festivo.
“Nunca tardava”
“Dias de poesia eram aqueles. Eram dias em que o sol nunca tardava. Nunca. Nem quando chovia. Nem quando as nuvens inventavam algum pretexto para não ventar.
Silêncio
“E havia as férias. E as viagens para a casa da praia. E as histórias que meu pai contava, enquanto dirigia. E o silêncio que obedecia à curiosidade de saber o que aconteceria com as personagens que ele inventava.
Extensão do mar
“Minha mãe acordava antes para cozinhar o que comeríamos na praia. Eu gostava de imaginar até onde o mar poderia nos levar. Nas suas águas. Nas metáforas do quão pequeno somos na imensidão de tudo o que há.
“Devoto da gratidão”
“E havia a oração em família. Meu pai era um devoto do sentimento da gratidão. Orar é agradecer. O que precisamos Deus sabe, não precisa pedir. É o que ele dizia. Minha mãe era dos pedidos. Achava que não custava lembrar a Deus. Meu pai argumentava, dizendo que Deus não precisa das lembranças. Nós é que precisamos. Precisamos mesmo.
Ausência
“Quando se foram, a ausência causava dor. Hoje, causa gratidão. Quantas histórias lindas desenhando a história que sou. Com os tropeçares todos. Com algumas noites prolongadas. Com algumas despedidas não autorizadas.
“Ofereço ao sol”
“Fosse eu o autorizador, estariam todos aqui. E nos sentaríamos juntos para o café cheio de vozes. Ouço as vozes todas nessa conferência da saudade e ofereço ao sol, que acaba de chegar, minha sincera gratidão”.
“Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo…” (poeta Carlos Drummond de Andrade)…
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